As Crianças Adormecidas, de Anthony Passeron, é o novo título da coleção Contemporânea da Livros do Brasil – que nos tem dado, aliás, grandes títulos de autores do nosso tempo. A tradução para português é de Diogo Paiva.

Este livro constitui uma estreia literária que tem sido vastamente elogiada. Confesso ainda que começo a descobrir um padrão identificador de alguns dos títulos cuja leitura tenho considerado mais apelativa. À semelhança de autores como Didier Eribon ou Édouard Louis ou do brasileiro José Henrique Bortoluci, Anthony Passeron investiga a tragédia da sua família, e a história de tantas outras na geração dos anos 80 do século passado, alternando com uma reconstituição documentada, sucinta, de leitura acessível, do aparecimento de um vírus desconhecido a que chamaríamos sida – fazendo um rastreio dos investigadores, dos estudos, dos pacientes, e do número de mortes que essa pandemia provocou, em que a doença era agravada pelo silêncio e o nojo.

As Crianças Adormecidas, narrado na primeira pessoa (não é possível separar autor de narrador, quando este nos fala expressamente da sua família, e cita os depoimentos que ajudam à reconstrução desta memória familiar), reconstitui, quarenta anos depois, a vida e a morte do seu tio Désiré, viciado em heroína.

Uma narrativa que agarra logo nas primeiras linhas, apesar de ser um tema denso (as imagens das moscas no talho que é propriedade da família, e onde o pai, irmão mais novo, fica a trabalhar, são emblemáticas), num tom confessional, mas sóbrio, que entrelaça memórias íntimas, sociologia e história.

Dentro da alternância que se entretece entre a memória familiar e pessoal e os capítulos relativos aos primeiros estudos e aos avanços, lentos, feitos no estudo da doença, embora o registo de escrita seja neutro, fica bastante clara uma crítica implícita à competição latente entre hospitais e centros de investigação franceses e norte-americanos. Pode-se assim deduzir que a falta desse espírito colaborativo entre nações tornou muito mais morosa a identificação, finalmente conseguida em 1983, do vírus que entretanto matou milhões de pessoas em todo o mundo – e continua a matar (por desconhecimento, vergonha, falta de apoios).

Anthony Passeron nasceu em Nice em 1983 e é professor de Literatura e de História e Geografia numa escola profissional. Em 2022 publicou este seu primeiro livro, finalista do Prémio Inter 2023 e do Prémio dos Livreiros em França e venceu vários outros, entre os quais o Première Plume, de melhor obra de estreia, e o Wepler – Fondation La Poste, de literatura contemporânea.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.