Eduardo Pitta foi poeta, escritor, crítico literário, ensaísta. A sua obra abarca todos os géneros, do romance ao ensaio, passando pelas memórias e contos, o que também faz dele uma das figuras mais versáteis da vida literária portuguesa. Nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, a 9 de Agosto de 1949. Viveu em Moçambique até Novembro de 1975.
Desde 1974 publicou dez livros de poesia, por exemplo o volume Desobediência, editado pela Dom Quixote em 2011. Escreveu ainda um romance, duas colectâneas de contos, quatro volumes de ensaio e crítica, duas recolhas de crónicas, dois diários de viagem e um livro de memórias: Um Rapaz a Arder (1975-2001), publicado em 2013 pela Quetzal. O ensaio Fractura (2003), sobre homossexualidade na literatura portuguesa contemporânea, foi considerado por Mark Sabine a primeira história da homossexualidade na literatura portuguesa. Foi ainda responsável pela edição da poesia completa de António Botto.
Em 2011 iniciou a sua actividade como crítico literário da revista Sábado. Manteve desde 2005 o blogue Da Literatura. Casou em 2010 com Jorge Neves, seu companheiro desde 1972. A 5.ª edição da iniciativa Alvalade Capital da Leitura, com curadoria de Carlos Vaz Marques, realizada entre 31 de maio e 5 de junho, centrou-se no autor, que tem uma forte ligação ao bairro de Alvalade.
Eduardo Pitta distinguiu-se igualmente pela sua participação cívica e pelo seu activismo na luta pelos direitos dos homossexuais em Portugal.
Faleceu no dia 25 de Julho deste ano, aos 73 anos.
Persona
Persona, publicado em 2019, é uma pequena pérola narrativa que constituiu a estreia do poeta e crítico literário Eduardo Pitta na ficção, em 2000. Esta 3.ª reedição foi publicada agora pela Dom Quixote, a partir da revisão feita à 2.ª edição em 2007. Persona é, como o título indica, uma revisitação da memória pessoal do autor, pois há uma certa quota de autobiografia, e é uma «versão moderna de uma educação sentimental». Classificado como uma «trilogia de contos morais», trata-se, na verdade, de um pequeno romance em que cada micronarrativa corresponde a uma fase de vida da mesma personagem. Afonso Sacadura, primeiro aos 12, depois aos 18, e na terceira e mais longa narrativa, como uma curta novela, aos 22, vive o seu coming of age, em que, ironicamente, o evento que parece determinar o início da sua infância ou inocência é quase idêntico ao que ocorre de novo em jovem adulto. Em 1962, Afonso é punido por ter tido relações contranatura com um colega. Apesar de Tiago ser 10 meses mais velho, mas por ser um jogador de basquete, um belo rapaz louro naturalmente masculino, a culpa recai inteiramente sobre Afonso, mais efeminado, conforme apontado pelo médico que o chama para examinação quando lhe pergunta porque é que ele cruza as pernas, «atitude tão pouco masculina» (p. 18). Esse mesmo psiquiatra que despe as calças e leva a mão de Afonso à sua braguilha, de onde retira o seu pénis erecto e sugere a Afonso que pense nele como um sorvete que pode ir lambendo e mordiscando gentilmente, para se poder avaliar a sua «capacidade de resposta» (p. 21). Este evento de assédio e culpabilização, que é rapidamente narrado, numa linguagem que tem tanto de estilizada como de crua e directa, pode ser esquecido rapidamente conforme passamos para o segundo conto, em que Afonso viaja pelo Kalahari em 1967 com Ralph, um típico sul-africano branco com ar de jogador de râguebi.
Um desporto arriscado
Em «Pesadelo», o último conto da trilogia, com 50 páginas – enquanto os outros contos rondam a dezena de páginas –, Afonso parece reviver o episódio de antes, mas agora nas devidas proporções, em que se vê como arguido num auto colectivo sobre a homossexualidade nos três ramos das Forças Armadas, no Moçambique de 1971, onde há muitos «tubarões» (p. 49) envolvidos, incluindo um tenente-coronel e um capelão. É aí que Afonso descobre o nojo, quando se torna vítima de uma investigação descabida, que aliás convirá esquecer como se nunca tivesse acontecido, dirigida exclusivamente a homossexuais «suspeitos de pouca simpatia pelo regime» (p. 80), pois ao contrário dos heterossexuais são «facilmente manobráveis» (p. 59), além de que se a FRELIMO visse uma foto do sargento com a boca cheia isso iria comprometer seriamente a guerra. O que impressiona na escrita de Eduardo Pitta é que na vivência da sexualidade de Afonso, e dos que o rodeiam, não há cedência à vergonha nem ao pudor, até porque Afonso se move no contexto social da alta burguesia onde os podres são imensos, independentemente da orientação sexual de cada um, pois também temos homens que em menos de 24 horas despacham em viagem, como se fossem bagagem, mulher e filhos para aproveitar uma nova paixão, e mulheres sobejamente conhecidas pelo seu apetite insaciável por jovens bem constituídos de 20 anos. Inclusivamente num mundo de etiqueta onde é sabido que «um homem não bebe Sauternes» (p. 74), a homossexualidade de Afonso parece não chocar ninguém na família, embora o pai considere tal como «um desporto arriscado» (p. 82).
Persona é uma narrativa ousada e corajosa em que se reconta os últimos anos da guerra colonial a partir da perspectiva de uma minoria, melhor dizendo, de uma perspectiva outra: uma perspectiva queer (para fazer uso de uma palavra já em desuso, ligada aos estudos de literatura gay) sobre o que significou ser homossexual em tempos de guerra e de tirania, ao mesmo tempo que, conforme se percebe na última frase, se prenuncia já o final dos tempos de então, com a queda de um Estado normativo e policiado, o término de uma guerra sem sentido, e a subsequente descolonização e liberdade.
Devastação
Devastação é o segundo livro de contos de Eduardo Pitta, publicado pela Dom Quixote. Ao contrário de Persona, estas seis histórias, com nome de gente (Ema, João Pedro, Ofélia, Gilberta, Inês, Zé Maria), cerca de 10 páginas cada, não se entretecem nem formam um mosaico. São casos de vidas díspares, singulares, de 4 mulheres e 2 homens, que parecem nada ter em comum e sem que nenhuma das histórias pareça ser destacada, quase todas com final súbito e por vezes desconcertante. A história de Gilberta, talvez pela vida sofrida que já levou, é das poucas que acabam menos mal.
Histórias com nome de gente
Ema nasceu em 1940 e num incidente infeliz, num baile de sociedade, é vítima de preconceito, que lhe chega da própria mãe, que a deixou às escuras em relação ao seu corpo. Corta com a família e refaz a sua vida, mas 50 anos depois ainda espera vingar-se de quem a humilhou.
João Pedro, aos 12 anos, corre risco de vida, com o fito de evitar passar o Natal com o pai, em território selvagem, cuja descrição é invocativo de parques e coutadas africanas: «Mokaputa estava preparada para receber convidados. Em número de seis, os bungalows alinhavam‑se cerca de cem metros à esquerda do pavilhão principal, uma construção maciça dominada pelo imponente tecto de colmo.»
Será necessário engendrar um plano arriscado para não passar o Natal num calor infernal com um pai que quase não dá por ele. Não que João Pedro desgoste do pai, que até o deixa assistir aos seus treinos de esgrima: «Uma das coisas de que João Pedro gostava era de brincar sozinho com os floretes. Vestia a elegante jaqueta acolchoada que lhe ficava a dançar no corpo, punha a máscara metálica e zurzia o ar.» (p. 25)
Ofélia (história contada em tempos cronológicos distintos) está à beira dos 70. Tem uma filha, cujo pai desconhece, e o neto Pedro, o seu preferido, bate na mulher, devastado (e aqui a palavra devastação é aplicada com intenção, pois Pedro é quem gera devastação, mais do que uma vez) pelo desejo dos corpos de homens nos chuveiros do balneário do ginásio e pela latência de uma memória distante do abraço de Rafael, um pescador, rapaz de vinte e quatro anos, recém‑chegado dos matos da Guiné, por quem a avó claramente nutre uma afeição: «Não percebe o interesse da avó pelo homem. Embirrou com ele desde o dia em que foi levado num passeio de barco, obrigado a mergulhar na Lagoa de Óbidos e depois a manter‑se à tona da água, o braço forte do homem preso à sua cintura. A experiência despertou nele um atropelo de sentimentos. Já tem acordado com a sensação de estar enroscado naquele braço. Nessas alturas apetece‑lhe prolongar o anelo, mas salta da cama.» (pp. 38-39)
Gilberta tem 60 anos e não levou uma vida fácil. Preparava-se para celebrar 25 anos, quando nessa manhã de sábado do dia 7 de Setembro de 1974, assinado o Acordo de Lusaka, a sua vida muda drasticamente. Após a tentativa falhada de secessão branca, deixa uma vida desafogada em Lourenço Marques, parte rapidamente com o marido e os três filhos para Joanesburgo, onde espera em sobressalto o desenrolar dos acontecimentos, até que «desembarcaram na Portela ao princípio da manhã de 29 de Dezembro de 1977. Tinha vinte e oito anos e um diploma da Wits, em Accountancy, que o ISCAL validou a contragosto, praticamente em cima do Verão de 1979, no termo de uma batalha jurídica.» (p. 51) Ainda que munida, ao menos, desse diploma, a vida de Gilberta refaz-se do nada: «Em Portugal teve de adaptar‑se à nova realidade. Os primeiros tempos foram difíceis. Ele há brancos e brancos, reflectiu.» (p. 56)
Não hesita em expulsar o filho de casa por ser «paneleiro», apesar da bofetada do marido. Os outros dois filhos ignoram-na no momento da morte súbita do pai e não comparecem ao funeral, por questões de incompatibilidade de agenda.
Inês tem 43 anos e sobrevive à derrocada do imobiliário… Mas tinha 25 anos «no dia em que o pai mete a pistola na boca e dispara. A mioleira deu cabo do Noronha da Costa. Negócios fora‑da‑lei? O pai? A sociedade de corretagem insolvente? Então a casa já não era deles?» (p. 62)
Zé Maria tem 52 anos e no dia 13 de Março de 2020 recebe o diagnóstico de um aneurisma cerebral. Esse anúncio do fim dos seus dias coincide com a retenção da mulher nos E.U.A. para onde partiu de modo imprevisto e se vê impedida de regressar, conforme o mundo pára, os aeroportos fecham, a vida se suspende.
Entre a verdade e a mentira
Entre estas várias histórias de vida devastadas é possível encontrar afinidades, como a vivência de um antes e um depois do 25 de abril, ou de uma infância e adolescência passada na África colonial e uma idade adulta vivida na metrópole. Há personagens em fuga de África cujas vidas terão de ser refeitas, deixando tudo para trás assim que deflagra a Revolução e se anuncia o fim da guerra e da ocupação colonial. Com a sucessão das histórias percebe-se o desenrolar do fio do tempo até chegarmos aos nossos dias, como as intervenções do FMI em Portugal (na história de Inês) ou a pandemia (Zé Maria) como pano de fundo, e sob um olhar crítico, com um arranque simbólico numa sexta-feira 13, em Março. É ainda possível ler como a homossexualidade, transversal a um par destas histórias, é alvo de humilhação, expulsão ou recalcamento. O marido de Inês, por exemplo, quando sabe que o filho vende drogas, expressa alívio: «- Pelo menos não é maricas.» (p. 64) Aqueles que ficam de fora, como o filho de Gilberta, podem ser os únicos cujas vidas foram mais alegres, e daí ficarem de fora destes contos.
Para quem leu outras obras do autor, e conhece o seu percurso de vida, é difícil impedir uma sensação de reconhecimento, como se alguns dos factos narrados fossem autobiográficos ou pelo menos inspirados em histórias reais. Como se anuncia na epígrafe do romance, uma frase, de Hilary Mantel: «Some of these things are true and some of them lies. But they are all good stories.»
É possível reconhecer nestes contos aspectos familiares na escrita de Eduardo Pitta, como um meio anglo‑saxónico, culto, abastado, condicente com as elites moçambicanas, onde não faltam os tiques snob, os anglicismos (as papas de aveia chamam-se porridge e Joanesburgo é sempre Johannesburg), e um humor negro peculiar que por vezes assoma, como no episódio, já citado, do suicídio do pai de Inês, cuja «mioleira deu cabo do Noronha da Costa».
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