Chega às livrarias a 27ª. EDIÇÃO (com data de Fevereiro de 2017) do quarto romance de João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas, que a par de O Meu Mundo não é deste Reino pode ser entendido como um díptico sobre os Açores, visto que os outros dois livros (Memória de ver matar e morrer e Autópsia de um Mar em Ruínas) se referem a memórias da guerra colonial, onde encontramos referências explícitas a esse modo de vida das ilhas em passagens como: «o pasmo dum arquipélago que encalhara na mística religiosa do século XVI.» . Ou note-se ainda a alusão que é feita intratextualmente ao seu anterior romance: «em que todos viram (…) a caricatura de um país mitológico e intemporal…» , pois o narrador assume-se, ainda que num logro intencional e ilusório, como sendo uno com a voz autoral. Contudo, se Gente Feliz com Lágrimas pode parecer, num primeiro impacto, uma continuação de O Meu Mundo Não É Deste Reino, em que se retoma esse povo do Rozário quando, num tempo mais actual, se atreve finalmente a partir além desse mar branco que envolve as ilhas, a ambiência mágica que antes perpassava na Ilha vai desaparecer, associada à própria partida do protagonista para Lisboa. Além disso, a opressão aqui retratada prende-se com um menino que vive num medo constante de um pai violento e que materializa na paisagem da sua infância esses fantasmas, puramente internos, que o assombram:
Tudo irreal e oculto, como o próprio sol o era na sua esfera parda e oblíqua. Envolvendo as mães dos pêssegos e dos outros frutos, as matas de criptoméria eram presenças fulvas, cor de estanho, postas ali de propósito pelos antepassados só para captarem o tempo parado dos mortos. O ninho esdrúxulo do Grande Medo abria-se para receber o frio de meu corpo. Passavam então, como num desfile, por cima das copas das árvores, os mortos da família (…).
Este romance retrata o sentimento de exílio da diáspora do povo açoriano, mas também de todos os milhares de portugueses que se espalharam pelos vários continentes, levando dentro de si o mundo em que cresceram, sem que dele se separem e sem que a ele possam voltar, pois nada permanece igual, engolido pela voracidade do correr do tempo. A força da vivência na Ilha, novamente maiusculada, permanece arreigada na memória dos açorianos que emigram para o Canadá, para a América e outros destinos além-mar, como transparece na seguinte passagem:
Todos estão aqui mas continuam nesse tempo da Ilha. Trouxeram-na, mantêm-na intacta dentro de si (…), mudaram de nome – mas persistem no tempo obsessivo das procissões e romarias, no pudor da mais sagrada nudez, no vício de dizer mal dos vizinhos (…). Tristes, enigmáticos, fingem a euforia dessa imensa importância de se estar vivo nos dias de Vancouver. Sonham com as vacas, as terras e os cavalos dos Açores e fazem planos para casas vistosas à beira da estrada que liga o Nordeste a Ponta Delgada.
Se Gente Feliz com Lágrimas é o embarque no cais e a ruptura com o mundo da infância, então O Meu Mundo Não É Deste Reino representará «a terra natal como símbolo de uma infância mitificada e perdida» , sendo esse o reino encantado que tanta matéria-prima fornece a estes autores que versam o realismo mágico. Este romance, que é também o mais extenso do autor, foi depois adaptado pela RTP ao formato do pequeno ecrã, numa série televisiva. João de Melo remete novamente para o Rozário na sua novela, publicada em 2009, intitulada A Divina Miséria. Esse pequeno livro é, aliás, segundo nota do autor, uma versão largamente reescrita, que sofreu revisões sucessivas, desde um primeiro conto lançado num periódico, depois um conto homónimo, «A Divina Miséria», integrado em Entre Pássaro e Anjo (1987), passando por «O Homem da Idade dos Corais», incluso nos contos de Bem-Aventuranças (1992).
João de Melo é uma das vozes fortes da literatura contemporânea e esta 27.ª edição da Dom Quixote de um livro publicado originalmente em 1988 vem reforçá-lo.
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