Zalatune, o mais recente livro de Nuno Gomes Garcia, publicado em Janeiro deste ano pela Manuscrito (Grupo Editorial Presença), é um thriller de fôlego capaz de prender o leitor mais renitente – pois é certo que nos dias que correm nem sempre é fácil termos a concentração necessária à leitura.
Apesar de correr o ano não muito distante de 2034, e de o cenário ser Ínsula, ilha insulada algures no Mediterrâneo, de onde se avista por vezes o continente meridional, há diversos pontos de ligação com a actualidade que tornam este livro menos uma distopia do que um mundo possível terrivelmente próximo: Ínsula foi o único país do planeta a sobreviver a uma pandemia em 2029 que dizimou os mais velhos; a ilha confinou-se ao mundo assim que se percebeu que o povo era imune; a procriação é uma missão patriótica e as relações homossexuais são crime; reinstaurou-se a pena capital; os estrangeiros que vêm do Sul são inimigos; os refugiados que conseguem aportar à ilha (sem serem exterminados no mar) são colocados em «campos de acolhimento» quando, na verdade, se preparam para serem tomados como escravos em troca do acolhimento prestado; o Primeiro-Ministro governa numa espécie de Big Brother, em que toda a sua vida é filmada; cada decisão política que urge é tomada pela população com base num referendo; a Internet foi substituída por uma Intranet; prepara-se, por fim, a construção de um muro protector que proteja a ilha de novas invasões.
Ínsula configura assim uma espécie de alegoria de tudo o que vai mal no mundo: «Se Deus não estivesse morto e enterrado, dir-se-ia sermos o povo eleito.» (p. 198)
A narrativa é construída de modo bastante cinematográfico, com algumas personagens centrais, cuja vida nos vai sendo desvelada em analepses que alternam com o ritmo da acção que se torna cada vez mais tenso, até que, a partir de metade do livro, o mistério adensa-se ainda mais quando a ilha começa a sacudir-se e um a um os habitantes da ilha começam a desaparecer, volatilizando-se no ar, o que relembraria a trama da série The Leftovers (HBO), não fosse o facto de cada uma destas pessoas parecer partir num acto consciente e de vontade plena, deixando antes um bilhete: «Parti para Zalatune».
Nuno Gomes Garcia nasceu em Matosinhos em 1978, estudou História e foi arqueólogo. Vive em Paris, onde é consultor editorial e divulgador da literatura lusófona na rádio e na imprensa escrita.

print
Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.