Um Coração Convertido, de Stefan Hertmans, publicado pela Dom Quixote, é mais um belíssimo romance do autor de Guerra e Terebintina.
Inspirado pelo cenário idílico de Monieux, aldeia da Provença onde passa grandes temporadas, um cenário «vagabundo dos tempos antigos» que chegou ao século XXI sem que quase nada se tenha alterado (p. 22), Stefan Hertmans guia o leitor num recuo temporal de mil anos. Numa era turbulenta em que a paz religiosa se esboroa e o poder feudal ascende, Vigdis, uma rapariga normanda de uma família nobre cristã, descendente de viquingues, renega a sua fé e família para se casar com o amor da sua vida, um judeu, o que para a classe alta de então era inimaginável. Vigdis Adelaïs muda o nome para Hamoutal e foge com David Todros, filho do rabino-mor do Sul de França, para Monieux, onde tenta começar uma nova vida com o apoio da comunidade judia, a salvo dos cavaleiros normandos que a procuram, em resultado da recompensa oferecida pela família a quem a encontrar.
Mas o ano de 1092 é também um tempo assombrado pelos presságios do final do milénio, e é o tempo da Primeira Cruzada. O rasto de destruição causada pela Guerra Santa resulta num pogrom que arrasa uma boa parte da população de Monieux e em que dois dos filhos de Hamoutal desaparecem, pelo que Vigdis se vê novamente forçada a prosseguir viagem; e o autor, e o leitor com ele, segue na sua senda, passando por Rouen, Narbona e Marselha, até ao Egito, procurando descobrir o que aconteceu com esta «mulher errante num mundo que não é o seu, perdida num destino que mal compreende» (p. 236).
Vencedor do Prémio E. du Perron, com tradução do neerlandês de Patrícia Couto, é uma história tão bela quanto trágica em que viajar no tempo implica também descer ao subsolo – por entre criptas, poços baptismais, sinagogas –, em busca do «vazio da história» (p. 314), tacteando a «sedutora escuridão» (p. 61), procurando escutar a verdade possível nos seus silêncios e nos interstícios de documentos fragmentados que hoje se encontram em Cambridge. Este trabalho de escavação leva o autor a percorrer os passos dados pela heroína do romance numa viagem que se aparenta impossível para o seu tempo e condição. Cria-se assim um jogo de ilusão em que o autor recria, com ínfimos detalhes, uma história que na verdade só em parte aconteceu – a imaginação do autor recria o resto, num olhar que nunca pode ser estabilizado sobre o passado de há mil anos, contrapondo constantemente o presente e o passado, num livro que é também uma elegia a um tempo perdido, num mundo novamente assolado por mudanças, migrações e crises de fé.
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