
Trilogia da Paixão, de Ariana Harwicz, é uma «trilogia involuntária» que marca a estreia em Portugal de uma das mais singulares e disruptivas escritoras da literatura sul-americana contemporânea.
Considero-me um leitor moderno, mas com preferência por leituras mais tradicionais. Estou, no entanto, fascinado com esta prosa, livre, entrecortada, insólita, gráfica, negra.
Aclamada pela crítica internacional, Ariana Harwicz explora radicalmente as relações filiais, o amor extremo e a loucura num volume que compõe, segundo a autora, uma trilogia involuntária dos seus três primeiros romances: Mata-te, amor; A atrasada mental e Precoce.
São assim três histórias reunidas num volume publicado pela Elsinore, de sugestiva capa negra, com uma tradução sublime e que não se adivinha fácil de Guilherme Pires. Três histórias reunidas em torno dos temas da violência e erotismo, maternidade e transgressão.
A linguagem é torrentosa, visceral, por vezes chocante, quase em diatribe, sobre uma mãe que, choque-se, sente a sanidade mental a esvair-se e capaz de fazer mal à criança que tem em mãos, que não para de chorar.
Ao longo da segunda novela, há inclusive uma confusão entre narradora e narratária, pois a certa altura a mãe-narradora, a filha a quem ela pretende passar a narrativa-testemunho, e ela própria (narradora) como filha-legado parecem fundir-se. Como se as três mulheres de três gerações fossem uma só.
Um livro escrito em capítulos que se sucedem aleatoriamente, sem fio condutor temporal, ora em breves fragmentos, ora de forma mais extensa. Uma prosa disfórica, que parece prenunciar quase sempre um esgotamento nervoso ou um mundo à beira do fim, escrita no limiar da sanidade, com personagens que caminham na berma da margem social.
“Nascemos para mastigar o rancor, em momentos como este quero ver o fim do mundo, ela suspira, e o segredo talvez esteja aí, em que o cataclismo surja e tudo recomece. E porque recomeçaria tudo? E porque não?” (p. 193)
A autora esteve em Lisboa a 18 e 19 de fevereiro e no festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, a 20 de fevereiro.
Ariana Harwicz (Buenos Aires, 1977) é considerada pela crítica internacional uma das vozes mais singulares e disruptivas da literatura argentina contemporânea. A sua obra, amplamente traduzida e premiada, caracteriza-se por uma escrita provocadora que desafia as convenções narrativas e linguísticas, e se mostra avessa a categorias e tendências. É autora de cinco aclamados romances: Mata-te, Amor (2012), adaptado ao teatro e ao cinema, e indicado para o Booker International Prize, A Atrasada Mental (2014), Precoce (2015), Degenerado (2019) e Perder el juicio (2024). Publicou ainda o ensaio El ruido de una época (2023) sobre o Mal literário.
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