O Silvo do Arqueiro, de Irene Vallejo, com tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas, publicado pela Bertrand Editora é o primeiro romance da autora de O Infinito num Junco. E ainda que um seja um romance e o outro um livro de não-ficção que se tornou um best-seller em tempos de pandemia e confinamento, há pontos em comum. Nomeadamente a paixão da autora pela Antiguidade Clássica e pela forma como o mito e a lenda, entretecidos com a História, tecem os fios da nossa vida, como seres pensantes e como leitores.
«Diverte-me muito ver como os humanos inventam lendas e o quanto precisam delas. Coleciono mitos de todas as regiões do mundo e, quando escalo as encostas do céu para ir ao banquete dos deuses, faço muito sucesso a repetir estas histórias que ouvi de lábios mortais. A nós, deuses, surpreendem-nos e de certa forma enternecem-nos os seus esforços para tornarem o mundo compreensível. Infelizmente, nós não temos nada parecido. Está claro que a arte de contar histórias é algo que não ensinámos aos humanos, aprenderam-na sozinhos, e a sua capacidade de invenção é deslumbrante.» (p. 56)
O Silvo do Arqueiro inicia com Eneias, o herói errante e derrotado que, em fuga do saque de Tróia com o seu filho, naufraga nas praias de Cartago, na costa africana. Marcado por uma misteriosa profecia que o anuncia como fundador de uma vindoura grandiosa civilização, Eneias deixa o seu destino nas mãos de uma mulher, a rainha Elisa.
A narrativa alterna entre as vozes de Eneias, Elisa e Ana, meia-irmã da rainha, uma criança que nasceu com uma mancha na cara que assinala o seu destino como feiticeira, e que, apesar do temor que inspira, acaba por se fazer ouvir. Mais pontualmente, intervêm ainda as vozes dos deuses, em particular Eros, que se imiscuem na esfera terrestre, procurando tecer o destino dos humanos, enquanto simultaneamente os invejam, pois aos deuses falta aquilo que distingue a natureza humana: o amor e a criatividade, qualidades que são possivelmente uma só.
«A minha mãe costumava dizer que, um dia, muitos aprenderão a desenhar os seus pensamentos, e a magia de guardar as palavras espalhar-se-á e será um grande feitiço contra o esquecimento.» (p. 152)
A narrativa de Eneias e Elisa, consoante se deixam enlear nos braços de Eros, alterna ainda, em capítulos breves, com a história de Vergílio que, séculos mais tarde, escreverá a obra, como encomenda do imperador Augusto, que lhe dará uma imortalidade próxima dos deuses, a Eneida. Tal como Eneias hesita entre deixar-se ficar em Cartago com Elisa em vez de seguir para Itália, a terra da profecia, um pouco como Ulisses quase se deixa enredar na teia de Circe. Por seu lado, Vergílio, o escritor propagandista de Augusto, teme não ser capaz de escrever o grande romance que lhe foi pedido pelo imperador.
Belissimamente escrito, numa prosa lírica, despretensiosa, principalmente quando são os desinspirados e invejosos deuses a assumir a narrativa.
O Silvo do Arqueiro, de Irene Vallejo, mais uma vez confirma que a revisitação das obras da Antiguidade continua a inspirar algumas das melhores obras de literatura contemporânea. Há um destaque especial para o papel da mulher, como se a autora procurasse ainda resgatar as personagens femininas do mutismo a que os clássicos tendem a votá-las; pois as suas ações e desejos surgem normalmente retratadas do prisma masculino que as reduziam a seres inconsequentes e caprichosos.
A leitura de O Silvo do Arqueiro pode também, de forma muito especial, servir de mote à leitura da mais recente tradução da Eneida, recentemente publicada pela Quetzal em edição bilingue – latim e português –, com tradução, introdução e anotações de Carlos Ascenso André. O romance termina aliás com uma clara referência à motivação e à determinação de Vergílio encarar, finalmente, o ponto de partida da escrita do romance que viria a sobreviver à civilização romana que Eneias fundou.
Irene Vallejo (Saragoça, 1979) é apaixonada pelas lendas gregas e romanas desde a infância. Estudou Filologia Clássica e doutorou-se nas Universidades de Saragoça e Florença. Empenhada em dar a conhecer os autores clássicos ao grande público, a autora dá palestras e visita escolas, universidades e bibliotecas, divulgando a importância e a atualidade do legado do mundo antigo. Colabora com meios de comunicação, como o jornal El País, em Espanha.
Alcançou o reconhecimento internacional com o seu livro O Infinito num Junco (Bertrand Editora, 2020), título que lhe valeu o Prémio Nacional de Literatura 2020 (Espanha) na categoria de ensaio. Venceu ainda o Prémio El Ojo Crítico de Narrativa, o Prémio Acción Cívica 2020, o Prémio Las Librerías Recomiendan 2020 e o Prémio Aragón 2021, entre outros.
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