O Amante Japonês é finalmente um retorno aos romances a que Isabel Allende nos tinha acostumado. Depois de algumas obras mais juvenis (O caderno de Maya) e uma estranha tentativa de incursão no thriller policial (O jogo de Ripper), cuja história se parecia arrastar sem qualquer chama, a autora (sobre quem já se escreveu aqui) regressa às suas histórias de grande fôlego que imediatamente puxam o leitor para dentro do seu mundo romanesco muito particular, tecido numa escrita fluída, desenhando um universo semi histórico , semi intemporal e levando-nos a conviver com personagens carismáticas e cheias de vida.
A narrativa de O Amante Japonês (cujo título evoca esse outro romance de Marguerite Duras, O amante) segue um plano em que alternam dois planos temporais, o presente e o passado, o que por outro lado traz uma oscilação entre a perspectiva de uma jovem chamada Irina Bazili e a de Alma Belasco, a elegante senhora que se instala na Lark House, o lar de idosos onde trabalha Irina.
Alma Belasco nasceu na Polónia, mais precisamente em Varsóvia, em 1939. Com a II Guerra Mundial a deflagrar, é enviada pelos pais, como forma de a manter em segurança, para a Califórnia, onde irá ser acolhida pelos tios que vivem numa opulenta mansão de São Francisco. A decisão revela-se acertada, pois como sabemos, Varsóvia foi uma cidade que acabou completamente destruída, como palco de guerra entre as duas grandes frentes da Alemanha e da Rússia.
Mas é com Irina que o romance se inicia, talvez por ser através desta personagem que vamos passar a conhecer melhor Alma Belasco e poder descobrir a sua história, justamente no momento em que esta é entrevistada e depois admitida: «Irina Bazili começou a trabalhar na Lark House, nos arredores de Berkeley, em 2010. Acabara de fazer vinte e três anos e tinha poucas ilusões, pois andava, desde os quinze anos, a saltitar de emprego para emprego e entre uma cidade e outra.» (pág. 9). Mas conforme a intriga se adensa e Seth, o neto de Alma Belasco, mais tarde, se apaixona por Irina percebemos que esta jovem proveniente da Europa de Leste também tem o seu passado obscuro e esconde um segredo.
O Amante Japonês é a história de uma octogenária que, ao aproximar-se dos derradeiros instantes da sua vida, recorda a amizade, que mais tarde se tornará no amor de uma vida, que partilhou com Ichimei Fukuda, o filho do jardineiro dos tios: «Conhecera-o no magnífico jardim da mansão de Sea Cliff, na primavera de 1939. Na época, ela era uma menina com menos apetite do que um canário, que de dia andava calada e de noite chorava, escondida nas entranhas de um armário de três espelhos no quarto que os tios tinham decorado para ela (…)» (pág. 49). Mas neste romance Isabel Allende não cria espaço para o amor romântico das suas outras obras e a classe social pode falar mais forte.
O humor irreverente da escrita de Isabel Allende sempre foi um dos seus fortes, característica que se acentuou mais depois dos seus primeiros romances, como se pode comprovar em alguns dos momentos deste romance: «Na opinião de Seth, no início de 2010, de repente, em cerca de duas horas, alguma coisa afectou a personalidade da avó. Sendo ela uma artista de êxito e um modelo no cumprimento dos deveres, afastou-se do mundo, da família, dos seus amigos, e refugiou-se numa residência geriátrica que nada tinha a ver com ela, passando também a vestir-se como uma refugiada tibetana (…).» (pág. 42). Ou quando a nora pergunta a Alma o que irão dizer às pessoas, esta responde prontamente: «- Digam que estou velha e louca. Não estarão a faltar à verdade» (pág. 43).
Outra das principais qualidades da escrita de Isabel Allende é o seu estilo narrativo ao jeito mágico realista que, apesar de ter tido o seu expoente máximo em A Casa dos Espíritos, ainda se respira entre as páginas desta obra, conforme se pode verificar logo no início do romance, quando o empregador de Irina a prepara para algumas das particularidades do seu trabalho na Lark House: «- Por último, menina Bazili, devo mencionar-lhe a questão dos fantasmas, porque certamente será a primeira coisa que lhe dirá o pessoal haitiano./- Não acredito em fantasmas, senhor Voigt./- Felicito-a por isso. Eu também não. Os de Lark House são uma mulher com um vestido de tule cor-de-rosa e um menino de três anos..» (pág. 14). A opinião de Irina sobre os fantasmas, aliás, iria mudar muito em breve…
Esta obra percorre ainda diversos episódios históricos e questões significativas mas sempre num contexto muito suave, sem verdadeiramente aprofundar esses temas ou momentos da história da Humanidade, como a diáspora judaica, o ataque surpresa do Império Japonês a Pearl Harbor ou o racismo. Talvez pelo facto de não ser um facto histórico muito conhecido, a descrição do que se sucede nos Estados Unidos da América nos meses seguintes ao ataque a Pearl Harbor é um dos momentos mais fortes do romance, onde se descreve a forma como, por se temer um novo ataque por parte do Japão e como meio de prevenir ataques de ódio aos asiáticos pela própria população americana, todos os japoneses que viviam na costa do Pacífico, isto é, cerca de vinte mil homens, mulheres e crianças, são evacuados por “razões de segurança militar” para dez campos de concentração em zonas isoladas do interior do país.
O romance abre-se ainda numa galeria de personagens curiosas e inspiradoras, que justificam sempre uma apresentação detalhada, como, por exemplo, Kathy, a psicóloga da Lark House: «Os anos de imobilidade e o esforço tremendo para sobreviver tinham reduzido o tamanho de Cathy, que parecia uma menina na volumosa cadeira elétrica, mas irradiava uma enorme força, suavizada pela bondade que sempre tivera e que o acidente multiplicara. O seu permanente sorriso e o cabelo muito curto davam-lhe um ar travesso, que contrastava com a sua sabedoria de monge milenar. O sofrimento físico libertara-a dos defeitos inevitáveis da personalidade e tinha-lhe lapidado o espírito como um diamante. Os derrames cerebrais não afetaram o seu intelecto, mas, tal como ela dizia, trocaram-lhe os fusíveis e em consequência disso aguçou-se-lhe a intuição e podia ver o invisível.» (pág. 208).
O romance pode até estar recheado de estereótipos e lugares comuns (os judeus ricos, a máfia da Europa de Leste, a serenidade dos japoneses) mas ler Isabel Allende é um daqueles prazeres quase culposos embora perfeitamente justificados se considerarmos como a voz da autora é original e criativa. Falta ainda o grande fôlego narrativo de outras obras suas, como Filha da Fortuna, mas é um livro que prende, entretém e seduz o leitor até ao fim, num tom ligeiro, mediante um humor muito próprio e um sentido prático da vida que daria para escrever alguns livros de autoajuda, sem nunca cair no delicodoce daquilo que se pode entender como chic literature (literatura feminina). Em suma, é impossível não nos deliciarmos com quem sabe contar uma história.
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