O Amor em Lobito Bay, publicado pela D. Quixote, é o quarto volume de contos da autora Lídia Jorge. Natural de Boliqueime, e uma das grandes romancistas da literatura portuguesa pós-25 de Abril, a autora opta por escrever estas narrativas breves entre os seus romances, como forma de experimentação literária, sendo o romance aquilo que a autora chama de “demonstração longa”. Os anteriores volumes de contos foram Marido e outros contos (1997), onde está integrado «Marido», um dos seus melhores contos, O Belo Adormecido (2004), e Praça de Londres (2008). Foram ainda publicados dois contos em edição individual: O organista e A instrumentalina, que já antes tinha conhecido uma edição isolada e estava ainda integrado na antologia de Marido e outros contos.

Na contra capa deste livro podemos ler pelas palavras da própria autora que: «Em termos de género, o conto é um híbrido. Ele promove os dotes copiosos da narrativa mas dirige-se para a forma sucinta do poema. Gostaria que os meus contos, oscilando entre uma e outra forma, contivessem filmes de acção no seu interior, e ao mesmo tempo se aproximassem da música livre, sucinta, feita com um mínimo de palavras.».

«O Amor em Lobito Bay» é o primeiro conto da colectânea, não só porque dá nome à mesma, mas porque acabou por coincidir com o tema de outros contos já escritos, igualmente inseridos na compilação: «O Tempo do Esplendor», «Dama Polaca Voando em Limusine Preta» e «Um Rio Chamado Mulher». Foi a partir desses que a autora decidiu escrever os outros cinco. Uma vez mais, na contra capa do livro, podemos ler que os contos reunidos neste livro «parecem chegar até nós com a finalidade de inquietar porque subvertem uma ordem e, ao mesmo tempo, têm o condão de aquietar porque propõem uma clarificação». É isso que acontece com a história do rapaz que queria comer o coração da andorinha. «O Amor em Lobito Bay» narra a história de um menino que queria apanhar uma andorinha viva pois «corria o rumor de que aquele que comesse o coração de uma andorinha apanhada em pleno voo, tornar-se-ia o maior corredor do mundo» (pág. 16). Lídia Jorge declarou, em entrevista, que o conto que dá título ao livro nasceu de uma história que ouviu contar, durante um almoço depois de uma sessão na Universidade Católica, ao padre José Tolentino Mendonça. A autora ficou tão sensibilizada com a história que lhe pediu depois autorização para se apropriar dela, cruzando-a com o que conhecia de África. África, ou pelo menos a África lusófona, é um continente familiar a Lídia Jorge, pois depois de terminar o curso foi para Luanda onde se casou. Além disso, já tinha ouvido os relatos do avô que vive em África e do pai que também foi emigrado por lá. Dois anos depois de Angola, foi viver para Moçambique, país sobre o qual escreveu, aliás, em A Costa dos Murmúrios, um dos romances que mais a impulsionou no panorama literário nacional, adaptado em 2014 ao cinema por Margarida Cardoso.

A salvaguardar a veracidade destas narrações breves temos no decorrer do conto «O Amor em Lobito Bay» planos alternados entre a história narrada e o momento em que a mesma é narrada pelo padre José Tolentino Mendonça, designado como «o professor»: «Era uma ave pequenina, fugidia, uma avezita de arribação que ora estava ora não estava. Era a andorinha. Disse o professor, enquanto nos serviam o primeiro prato.» (pág. 15).

Diz-se ainda no próprio texto de apresentação do livro de que em todos os contos «existe uma história de amor, no sentido mais amplo do termo, que entrecruza a experiência da confiança na vida com o desconcerto do mundo». Mas aquilo que realmente parece unir estes contos é a forma como todos eles decorrem fora do nosso país, como episódios em trânsito pelo mundo e também pela vida, muitas vezes assinalando o momento de transição entre uma certa infância ou ingenuidade e a idade adulta, de confronto com a realidade em geral e com a realidade decorrida das nossas próprias escolhas. O amor pode assim definir-se como um momento de encontro consigo próprio que permite, então, encontrar o outro.

O segundo conto, «Overbooking», ocorre num terminal de aeroporto onde um homem decide contar a um perfeito desconhecido um episódio traumático do qual participou e cuja verdade temível escondeu até àquele momento: «eu tenho uma coisa má para contar» (pág. 29). Este sentimento de isolamento ou de deriva num mundo maior perpassa ainda pelos outros contos, onde abundam ainda os estrangeirismos ou falas inteiras em inglês ou polaco, a confirmar essa ausência do país através do encontro com outras línguas. E talvez por o encontro com um Outro que partilhe connosco a mesma nacionalidade, a língua, as referências, seja mais forte esse impulso de confessionalidade e de despir a alma, como aconteceu a esse homem no aeroporto que confessa ter sido cúmplice de um crime.

«O Tempo do Esplendor» é o terceiro conto e um dos mais belos, a par de «O Amor em Lobito Bay», onde se conta a história de uma menina que para chamar a si o amor e o reconhecimento por parte do pai chega a tomar medidas drásticas. Esta narrativa terá também partido de uma história contada à autora, onde uma menina, Marina Pestana decinco anos, decide bordar um lenço para o pai onde caiba todo o seu amor: «O meu lenço tinha estrelas, o sol, a lua, os peixes e as flores e ninguém o via. O meu pai nem tinha escutado o meu murmúrio.» (pág. 59). Esta questão do distanciamento entre pais e filhas é aliás algo que cruza aliás a obra de Lídia Jorge, como, por exemplo, em O Vale do Paixão.

Destaque-se ainda «Um Rio Chamado Mulher» que cruza mais uma vez a ficção e a realidade, onde se narra, conforme a autora contou num encontro decorrido na Casa Manuel Teixeira Gomes, em Portimão, um episódio decorrido em «New Orleans» onde, na busca do legado deixado por William Faulkner, mais especificamente a propósito do seu conto «Old Man», se dá um encontro com uma mulher, de seu nome Barbara (parecendo ela própria uma personagem de filme ou de livro), que alega que A Escolha de Sofia é a sua própria história. Quem lê «Um Rio Chamado Mulher» sente-o como um episódio que poderia ser retirado de um diário da autora, sendo bem conhecido o apreço de Lídia Jorge pela escrita de William Faulkner, uma das suas influências literárias como é o caso da sua obra de estreia O Dia dos Prodígios (1980). E, a dado passo do conto, lemos mesmo algo que a escritora declarou, referindo-se ao seu pai, durante essa Conversa com Gente Singular, em Portimão, e que aproxima inequivocamente esta narrativa de um episódio autobiográfico: «Queria, mais uma vez, experimentar na alma o princípio legado pelo meu pai de que quanto mais nos afastamos de casa mais nos aproximamos da nossa verdadeira morada» (pág. 105).

O leitor anda assim numa corda bamba em que quer ler e sentir estes contos como uma confissão da própria autora, mesmo quando ela foi apenas uma interposta voz a dar conta dos relatos que lhe chegaram ou que testemunhou.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.