Notas Sobre Um Naufrágio, de Davide Enia, publicado pela Dom Quixote, com tradução de Tânia Ganho, venceu o Premio Anima Letteratura 2017, o Premio SuperMondello e Mondello Giovani 2018.

Começamos este livro julgando que se trata de não-ficção mas gradualmente ganha os contornos de um romance, pelo lirismo, pela profundidade da história, pela forma como quase parece fugir ao tema central. Esta narrativa resulta de várias viagens do autor à ilha de Lampedusa, onde assistiu a vários desembarques de migrantes oriundos de vários países africanos, e não só, como a Nigéria, Camarões, Síria, Eritreia, Sudão, Somália, Marrocos, Tunísia, e Nepal…

Nesta ilha há mais de 10 mil pessoas contra cerca de 5 mil ilhéus. Pela ilha já transitaram centenas de milhares. Lampedusa não é, contudo, um porto de chegada. Da mesma forma que lá chega o sopro do vento siroco de África, Lampedusa representa, há mais de 20 anos, apenas uma outra etapa numa odisseia de vários anos de privações, sempre com risco de vida, numa fuga desesperada em que este tráfico de pessoas custa cerca de 2 mil dólares por cabeça. Mesmo sabendo que a maioria se perde pelo caminho. Os cadáveres apanhados pelas redes dos barcos pesqueiros são rapidamente devolvidos ao mar, para evitar problemas com as autoridades.

«Lampedusa é, em si mesma, uma palavra-contentor: migração, fronteira, naufrágios, solidariedade, turismo, época estival, marginalidade, milagres, heroísmo, desespero, suplício, morte, renascimento, resgate, tudo isto contudo num único nome, numa amálgama que ainda não tem uma interpretação clara, nem uma forma reconhecível.» (p. 13)

Davide Enia socorre-se de testemunhos de refugiados assim como daqueles que os ajudam a desembarcar (voluntários, mergulhadores, pessoal médico, a Guarda Costeira) e tentam providenciar algum conforto na sua dura travessia até entrarem na Europa – leia-se a anedota do pobre coitado que chorava que não queria estar no Inferno, mas depois também recusou estar no Paraíso, pois aquilo que mais desejava era chegar à Alemanha…

«o que está a acontecer hoje, no Mediterrâneo, pode ser interpretado como uma simples antevisão do futuro: o que foi separado, está a unir-se. O movimento, a deslocação, a migração, fazem parte da vida do próprio planeta. Migram os pássaros e migram os peixes, movem-se os mares e deslocam-se as manadas e os continentes. Acontecerá. Já está a acontecer. A África chegará e colocar-se-á por cima da Europa e do que restar.» (p. 75)

De forma subtil, o autor descentra-se depois da questão dos refugiados, e aborda a relação com o pai, assim como a doença do tio, irmão do pai. Numa cultura do Sul, mediterrânica, em que os homens comunicam sobretudo por silêncios, Davide escreve sobre a beleza viril das relações humanas, na forma como o pai inesperadamente aceita acompanhá-lo numa das suas viagens a Lampedusa e como acaba por aceitar a inevitabilidade cada vez mais próxima da morte do tio.

«Assistimos impotentes ao naufrágio e é como se a água entrasse dentro de nós.» (p. 91)

É bem possível ao longo da leitura dê por essa mesma água a escorrer de si… ou que tenha de parar um pouco para respirar fundo.

O autor nasceu em Palermo em 1974. É dramaturgo, actor e romancista. Levou a palco uma peça baseada no livro que recebeu, também, diversos galardões.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.