Conforme comecei a viver fora (e já lá vão 8 anos) e, por conseguinte, a viajar mais dentro e ao redor dos países onde tenho vivido, há um autor que se tem tornado um guia, dos sítios por onde andei e dos locais aonde alimento a esperança de ir. Enquanto vivi no Botsuana fiz-me acompanhar do Viagem por África, quando viajei por Angola e Namíbia, percorri simultaneamente as páginas de O último comboio para a Zona Verde, quando vivia na Beira, e era impossível pensar em viajar por uns tempos, após a passagem do ciclone Idai, embarquei n’O Grande Bazar Ferroviário, e agora, numa ilha fechada há mais de um ano, e a fazer quase 3 meses de confinamento, sem praticamente sair de casa se não uma vez de duas em duas semanas para me abastecer de comida, era altura de voltar a mudar de ares. Na Planície das Serpentes – Uma Viagem pelo México, de Paul Theroux, autor publicado pela Quetzal, era a fuga possível.
Paul Theroux, com mais de cinquenta anos de viagens, é agora um velho, a chegar aos 76, idade em que tem de fazer um teste aos olhos para renovar a carta de dois em dois anos, pelo que se falhar será o fim dos seus tempos de condutor. Corre o ano de 2017 quando decide pegar no seu carro e partir em viagem para um outro Sul Profundo. Publicado originalmente em 2019, este livro é, portanto, o mais recente trabalho do autor e parte de uma necessidade que sentiu de «resumir o México» (p. 22), pois para Theroux ainda nenhum comentador ou viajante o conseguiu, mas também de se sentir menos «ignorado e diminuído» no seu novo estatuto de cidadão sénior que pouco conta. Talvez seja aliás um sintoma de senilidade o facto de se arriscar a partir sozinho de carro para o México sem praticamente avisar ninguém, e aqueles que vai encontrando na viagem, e não o conhecem, avisam este velho gringo de que devia voltar para casa, antes que acabe morto. Afinal o México é um dos países mais perigosos, com cidades onde há um assassinato por dia, especialmente para aqueles que se atrevem a relatos verídicos, como os jornalistas, onde a sua taxa de mortalidade é superior à do Iraque ou da Síria (p. 40).
Na Planície das Serpentes, com tradução de Telma Costa, é um aturado trabalho de pesquisa, onde o autor parte das suas notas de viagem, mas também de dezenas de leituras de obras e autores, de ficção e não-ficção, que nos vai citando, assim como de uma série de números e estatísticas de diversos estudos que foi consultando. Este livro, escrito durante o mandato de Trump, intenta ainda uma forte crítica política, na perspectiva de quem testemunhou o desespero dos migrantes (mexicanos mas também chineses, iraquianos, nigerianos, e muitos mais, que tentam entrar por ali) que procuram uma vida melhor do outro lado da fronteira, mesmo sabendo que isso pode custar-lhes a vida: «A marcar o contorno do nosso grande país despontava (…) uma feia vedação de aço que se poderia associar a um perímetro prisional, 7,5 metros de altura – nunca vira nada assim em qualquer outro país» (p. 27). Uma «muralha medieval», «mais formal do que o Muro de Berlim, mais brutal do que a Grande Muralha da China» (p. 65), mas na verdade um mero símbolo de exclusão e não como uma fronteira prática, nesta nossa era de «vigilância aérea e tecnologia de alta segurança» (p. 27).
Para estes migrantes divididos entre uma vida melhor a Norte e continuar a viver sob a corrupção, constante brutalidade, medo dos cartéis de droga (quase nem se atrevem a murmurar a palavra cartel), e a certeza de que ao serem detidos arriscam-se a ser separados das suas famílias (e ainda hoje haverá milhares de crianças detidas e separadas dos pais, que nunca os reencontraram), a decisão não parece ser muito difícil. Há ainda aqueles que atravessam a fronteira todos os dias para poder trabalhar, apesar dos orçamentos baixos. Paul Theroux percorre toda a extensão da fronteira e faz-nos um relato excruciante da realidade que se vive entre os Estados Unidos e o México, para depois mergulhar profundamente no interior, em busca da terra da liberdade, segundo a cultura ocidental, terra de aventureiros e foragidos, e leva-nos pelo deserto de Sonora e pelas pirâmides das civilizações maia e tolteca, revelando um México pouco conhecido, cheio de cultura, história, música, cor, e, claro, muita comida.
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