Espinosa viveu num tempo em que a crença religiosa era lei (vigorava a Inquisição) e qualquer pensamento desviante condenava um livre pensador à prisão ou à morte. Contudo, apesar do risco constante, manteve-se leal ao seu próprio pensamento filosófico e concebeu uma noção inovadora de Deus que ultrapassava a crença religiosa imposta.
O Milagre Espinosa – Uma filosofia para iluminar a nossa vida bestseller vendeu mais de 300 mil exemplares em França, foi publicado em Portugal pela Quetzal e narra-nos a vida e obra de Espinosa. Narra-nos, porque apesar de este livro de Frédéric Lenoir não ser ficção, conta-nos a história de Baruch de Espinosa de um jeito claro e envolvente. Note-se, por exemplo, como o autor designa o filósofo pelo seu primeiro nome, Baruch, nomeadamente na primeira parte do livro, quando fala de Espinosa ainda antes da sua obra ser publicada e o seu pensamento começar a circular pela Europa. Oscila-se assim, aparentemente, entre os nomes Baruch e Espinosa conforme o narrador (porque o autor assume-se sempre na primeira pessoa e partilha o seu próprio pensamento) se refere à pessoa ou ao filósofo.
Os antepassados de Espinosa foram, provavelmente, judeus espanhóis expulsos em 1492 e que se refugiaram em Portugal, mas que novamente partem em busca de asilo para as Províncias Unidas dos Países Baixos (Holanda).
«De uma educação religiosa dogmática e rigorista, assente no medo e na esperança, que abandona a partir do final da adolescência, passa, de maneira apaixonada, para uma busca livre pela verdade e pela verdadeira felicidade, assente apenas na razão.» (p. 32)
Com 23 anos, tendo perdido quase toda a família e sobrevivido a uma possível tentativa de assassinato, Espinosa renuncia à publicação de alguns dos seus livros ou passa a publicá-los sob pseudónimo, contudo o seu pensamento é inconfundível, pelo que isso pouco adianta. Os anciãos da sinagoga de Amesterdão decretam um herem, um acto radical e raro, banindo o filósofo holandês da comunidade.
«Com a ajuda do julgamento dos santos e dos anjos, excluímos, expulsamos, amaldiçoamos e execramos Baruch de Espinosa, (…) em presença dos nossos livros sagrados e dos seiscentos e treze mandamentos que neles estão contidos. (…) Que o Pai Eterno inflame contra esse homem toda a Sua ira e faça cair sobre ele todos os males mencionados no livro da Lei: que o seu nome seja apagado deste mundo para todo o sempre» (p. 39)
A sua obra Ética, publicada um ano depois da sua morte, foi condenada e catalogada no livro negro da Igreja Católica. Mas o pensamento e o nome de Espinosa mantiveram-se vivos e a sua filosofia é agora recuperada neste livro, a uma nova luz, de modo a iluminar a nossa vida e nos ajudar a viver melhor. Pode até parecer um livro de desenvolvimento pessoal (vulgo auto-ajuda), não fosse estar assente numa leitura crítica atenta e pertinente das obras de um dos grandes filósofos. Criador da etologia ao propôr uma ética «conducente a uma vida boa e feliz, a qual assentará numa metafísica, ou seja, numa conceção de Deus e do mundo» (p. 109), rompeu com a herança judaico-cristã que «circunscreve Deus a uma só definição» (p. 119) e foi pioneiro na defesa de uma leitura histórica e crítica da Bíblia.
São muitas as passagens deste livro que gostaria de evocar, mas para terminar fica uma passagem bastante actual (e um pouco extensa) em que Lenoir consegue revivificar o pensamento de Espinosa, falecido em 1677, e transpô-lo para o nosso tempo: «Todo o pensamento de Espinosa assenta nesta ideia, que defende que um indivíduo estará tanto mais em harmonia com os outros quanto melhor estiver consigo mesmo. Ou seja, as nossas democracias serão tanto mais sólidas, vigorosas e vivas quanto mais os indivíduos que as compõem forem capazes de dominar as suas paixões tristes – o medo, a ira, o ressentimento, a inveja, etc. – e de pautar a existência pelos princípios da razão. Mesmo se não o diz de forma explícita, também se percebe que está subjacente a ideia de que os cidadãos, mais movidos pelas emoções do que pela razão, podem eleger ditadores ou demagogos.» (p. 98)
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