Contra mim, de Valter Hugo Mãe, foi publicado em outubro, pela Porto Editora, e constitui o livro mais pessoal e intimista do autor. A pintura que ilustra a capa é do artista plástico Agostinho Santos.
Contra mim representa a construção da memória da infância, a partir de quinze anos de textos dispersos e apontamentos. É um livro de afectos, em que o autor revisita os primeiros anos da sua vida, na sua relação afectiva com a mãe, com as namoradas de infância, e sobretudo com as palavras, quando escreve poemas sem o saber, quando colige palavras que aprecia particularmente, como pirilampo, quando ganha um chocolate na escola por recolher mais de 170 provérbios, quando compra o seu primeiro livro sentindo uma necessidade imperiosa de desvendar os seus segredos. Cada capítulo forma um episódio singular na infância do autor, podendo ser lido de forma independente e autónoma. Mas há coesão entre os vários textos, e uma nítida evolução da acção, em torno da sua família, da escola, dos amigos, da descoberta da sexualidade, de um microcosmos social de Paços de Ferreira. Como escreve o autor, a intenção era que os vários textos aqui coligidos pudessem ser lidos com a lógica de um romance, e o regresso à infância pode ter sido a salvação da memória num ano de confinamento, de isolamento e solidão, que convidou à introspecção.
Valter Hugo Mãe é um dos mais destacados autores portugueses da atualidade. A sua obra está traduzida em várias línguas.
Publicou sete romances: Homens imprudentemente poéticos; A desumanização; O filho de mil homens; a máquina de fazer espanhóis (Grande Prémio Portugal Telecom Melhor Livro do Ano e Prémio Portugal Telecom Melhor Romance do Ano); o apocalipse dos trabalhadores; o remorso de baltazar serapião (Prémio Literário José Saramago) e o nosso reino. Escreveu ainda livros para os mais novos: Contos de cães e maus lobos; O paraíso são os outros; As mais belas coisas do mundo e Serei sempre o teu abrigo. A sua poesia encontra-se reunida no volume publicação da mortalidade.
«Sentei-me junto de um menino (…).
Abri o caderno para lhe mostrar as minhas palavras e ele não conseguia falar. Estava atónito na tristeza e gemia um pouco. E eu, imparável, expliquei que as palavras se mexiam e que se as puséssemos a dizer coisas baralhadas podia nascer o que nunca existira antes. E talvez aquilo tivesse criado uma história e fosse tão louco quanto divertido de ouvir. Era, disso lembro, um modo de esperança. Para encontrar outros futuros, eventualmente até já um outro dia de amanhã, ali tão rente a chegar, as minhas palavras secretas organizavam-se em preces e anedotas. Porque os pirilampos deixavam cristais em toda a parte, e isso era impossível, tanto quanto maravilhoso de se imaginar. E o menino, mais quieto de seu choro, disse-me: os pirilampos podem deixar os cristais e fazer faíscas. E eu sorri. Anotei a palavra faísca. Ele havia entendido com rigor a utilidade das palavras. Senti-me abençoado.» (p. 58)
Adenda – Junho de 2021: Valter Hugo Mãe é o vencedor da edição de 2020 do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE) e Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas (DGLAB), com a obra Contra mim. O júri, coordenado pelo ensaísta José Manuel de Vasconcelos e constituído pelos professores, investigadores e escritores António Pedro Pita, Carlos Mendes de Sousa, Manuel Frias Martins, Maria de Lurdes Sampaio e Rita Patrício, escolheu este livro entre as 61 obras apresentadas a concurso.
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