Como Organizar Uma Biblioteca, de Roberto Calasso, publicado pelas Edições 70, com tradução de João Coles, é um pequeno ensaio para amantes de livros, organizado em quatro capítulos que versam temas distintos.

Apesar do título, não se espere ler este ensaio, ou conjunto de crónicas, como um manual de instruções ou corre o risco de conseguir desarrumar ainda mais a sua biblioteca; o que depende sempre, claro está, do ponto de vista e do gosto de cada leitor. Lemos a certa altura que aqueles que tentam pôr os seus livros em ordem devem ao mesmo tempo reconhecer e modificar uma boa parte da sua paisagem mental. Esta é uma tarefa delicada, cheia de surpresas e descobertas, mas sem uma solução.

O primeiro capítulo, mais extenso, que dá nome ao livro, é um ensaio prazenteiramente desorganizado em que o autor salta de assunto de assunto, com humor e galhardia, tocando os mais diversos temas. Momentos há em que parece observar a sua própria biblioteca e desvendar um sentido no caos da sua (des)arrumação, como se houvesse alguma explicação lógica para certos livros estarem ao lado de outros – afinal quem precisa de uma ordem alfabética quando, ao procurar um livro na estante, é muito mais apelativo deixar-nos levar por outros que nos chamam mesmo ao lado.

Vários episódios são aqui relatados, misturados com fragmentos de uma autobiografia involuntária, coligidos a par de outras cenas da vida de diversos escritores. Cabe ao verdadeiro leitor, porque é essa a sua função, procurar um fio condutor na leitura e segui-lo, emaranhando-o ou desfiando-o.

No capítulo seguinte, «Os anos das revistas», o autor visa recordar e compreender o que foram as revistas, e da sua importância entre os anos 1920 e 40, um pouco por tudo o mundo, “polinizadoras” da arte e das correntes literárias, mas concentrando-se especialmente em Paris, nomeadamente entre os surrealistas. É a partir daí que a literatura se prepara para se transformar naquilo que “seria no novo milénio: um facto de indivíduos, tenazmente separados e solitários” (p. 105). «Nascimento da recensão» fala-nos desse género literário menor, ainda hoje olhado com condescendência e impaciência (p. 109), focando-se num episódio em torno de um exemplar (quase) perfeito do que é uma recensão. O último ensaio, «Como organizar uma livraria», retoma, em parte, o capítulo introdutório, focando-se agora no mercado livreiro e na disposição perfeita de uma livraria de modo a levar o leitor a não encontrar um livro e levar outro que não procurava, mas é exactamente aquilo que afinal desejava ler… Um brevíssimo texto em que Calasso toca ainda questões actuais, como a ideia de que hoje “o livro é algo que vive nas margens – quase como um reflexo -, em comparação a um magma em perpétuo movimento, que se manifesta em ecrãs.” (pp. 118-119); ou a fantasia generalizada de que o livro não é autossuficiente, e por isso, as livrarias foram sendo repensadas como pontos de venda de uma “miscelânea de mercadorias” (p. 128) quando, na verdade, um livro, e uma boa livraria, só pede uma cadeira confortável e uma chávena de chá ou café.

Roberto Calasso (1941-2021) foi um editor, escritor e ensaísta italiano. Em 1962 juntou-se à recém-criada Adelphi, onde trabalhou ininterruptamente e da qual se tornou diretor editorial em 1971 e diretor-geral em 1990. A partir de 1999, foi presidente da editora. Paralelamente à sua atividade editorial, Calasso desenvolveu uma carreira como escritor e ensaísta. Nas suas obras, indaga os mitos e o passado para investigar o presente do ser humano. Foi nomeado professor convidado da cadeira Weinfeld de Literatura Europeia Comparada, na Universidade de Oxford.

print
Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.