O mais recente romance de Salman Rushdie (autor publicado pela Dom Quixote) foi lançado menos de um ano depois da eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos da América e consegue ainda assim fazer uma parábola da América Moderna. Rushdie ter-se-á mudado em 1999 para os Estados Unidos e já no anterior romance, Dois Anos Oito Meses e Vinte e Oito Noites, se podia ler uma reflexão paródica do que significa viver na América nos dias de hoje. Contudo, nesse título que brinca com As Mil e Uma Noites, a intriga era claramente fantasiosa, misturando heróis com mitologia, sob forte influência do cinema e da banda-desenhada.
A Casa Golden inicia «No dia da tomada de posse do novo presidente» (p. 13) e a acção decorre sensivelmente nos oito anos subsequentes de administração Obama. O narrador é René Unterlinden, um jovem de 29 anos, cineasta (e as referências ao cinema desmultiplicam-se, bem como a linguagem cinematográfica utilizada em diversos momentos). René narra assim, em mais de 400 páginas, o momento em que Nero Golden e os seus três filhos chegam aos Estados Unidos, oriundos de um país não nomeado se não no final do romance, mas fácil de identificar como sendo a Índia. Este «rei destronado de setenta e tantos anos» que ocupa o palácio Golden traz ainda um «cheiro inconfundível do perigo rude e despótico» (p. 13), como perceberemos melhor no final do romance, quando finalmente se percebe a origem da riqueza do magnata que, entretanto, soçobra sozinha numa América ela própria em decadência, e sobrevive à morte sucessiva dos seus três filhos.
Salman Rushdie está certamente no auge da sua pujança, com este romance ambicioso e denso, que foca temas tão díspares como a transexualidade, a emigração ou as alterações climáticas, com diversos ecos e referências musicais, literários, cinematográficos (também apontado como uma espécie de O Grande Gatsby), mas que infelizmente também se pode tornar uma leitura pesada que desafia o leitor comum.
Na segunda metade do romance, começamos a pressentir os ventos de mudança, conforme proliferam as referências ao novo candidato, designado como Joker: «As origens do Joker eram objeto de controvérsia; o sujeito parecia gostar de deixar que houvesse versões contraditórias a competir pelo espaço aéreo, mas em relação a um facto toda a gente, apoiantes apaixonados e acirrados antagonistas, estava de acordo: ele era completamente louco, a precisar de ser internado. O que era espantoso, o que tornava esta eleição tão diferente de todas as outras, era o facto de as pessoas o apoiarem pelo facto de ele ser louco, e não apesar disso.» (p. 281)

print
Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.