Canção do Profeta, de Paul Lynch, é o quinto romance do autor irlandês e venceu o Prémio Booker 2023. Publicado pela Relógio d’Água, com uma excelente tradução de Marta Mendonça, que imprime o ritmo e fluidez de uma prosa contínua, ininterrupta, escorreita, a criar o tom certo de um crescendo de inquietação que cedo vira opressão.
Numa noite escura e chuvosa em Dublin, Eilish Stack, cientista e mãe de quatro filhos, abre a porta de sua casa e depara-se com dois oficiais da recém-formada polícia secreta da Irlanda. Uma visita nocturna por parte de agentes do Estado nunca será claramente bom sinal. E logo se torna óbvio que pretendem interrogar o seu marido, um sindicalista, mais precisamente o secretário-geral-adjunto do Sindicato dos Professores da Irlanda. No preciso momento em que pisam essa casa há ainda uma sombra que se instala, dando a sensação de que a unidade familiar se começa a desfazer, e que confirma o estranho clima que tem vindo a ensombrar o país, em que os poderes de emergência começam a obliterar os constitucionais.
“Diz-se cientista e no entanto acredita em direitos que não existem, os direitos de que fala não podem ser confirmados, são uma ficção decretada pelo Estado, é o Estado que decide aquilo em que acredita ou não acredita de acordo com as suas necessidades” (p. 59).
A narrativa adensa-se, escurece, ensombra, e pode tornar-se opressiva, pois o tema naturalmente não é simples nem ligeiro, levando-nos a mundos possíveis quase apocalípticos tomados pelo extremismo. Um dos pontos fortes é como em pinceladas gerais, sempre sem grandes detalhes ou pormenores de informação, se cria esse ambiente de opressão, em que somos, a par da própria protagonista, gradualmente tomados pela incerteza, pelo instinto de sobrevivência como única força motriz face ao vazio, pelo negrume da incerteza do mundo num futuro se calhar não tão distante: “tens de continuar a acreditar, não pode haver desespero onde há dúvida e onde há dúvida tem de haver esperança” (p. 133).
Apenas o lirismo da prosa ajuda a atenuar a densidade do horror: “somente existe esse momento oriundo do que agora é passado pelo que o futuro não existe, o futuro a recuar ao silêncio da ideia morta e no entanto ela procura um pedaço a que se agarrar, para persuadir o futuro a regressar do vácuo, para quebrar esse silêncio lançando-se à lógica dos acontecimentos e confiando no máximo de variáveis que lhe é possível confiar” (p. 190).
Paul Lynch é autor de cinco romances. Anteriormente, o escritor ganhou o Prémio Kerry Group de Romance Irlandês do Ano e o Prémio Libr’à Nous de Melhor Romance Estrangeiro de França, entre outros. Foi finalista de muitos prémios internacionais, incluindo o Prémio Walter Scott do Reino Unido, o Prémio Strega Europeu de Itália, o Prémio do Melhor Livro Estrangeiro de França, o Prémio Littérature-Monde e o Prémio Jean Monnet de Literatura Europeia. Em 2024, foi nomeado Distinguished Writing Fellow da Universidade de Maynooth e eleito para a Aosdána, a academia irlandesa das artes que honra artistas distintos. Os seus romances foram traduzidos para mais de 30 línguas.
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