Afastar-se – Treze Contos sobre Água, de Luísa Costa Gomes, autora publicada pela Dom Quixote, reúne ficções breves, escritas ao longo de mais de cinco anos por uma das grandes autoras portuguesas. Desenha-se, curiosamente, um arco temporal, quando consideramos que a autora se estreou justamente em 1981 com o livro Treze Contos de Sobressalto, pelo que se assinala com este novo volume de contos 40 anos de vida literária. Editado em Maio de 2021, o livro foi agora declarado vencedor do Prémio Literário Correntes d’Escritas, que distingue um livro de contos, na área da ficção, pela primeira vez. O júri do Prémio Correntes d’Escritas, constituído por Ana Pereirinha, Carlos Quiroga, Carlos Vaz Marques, Isabel Lucas e Isabel Pires de Lima, justificou a escolha sublinhando a “coerência na diversidade deste livro de contos, género em que a autora se tem destacado ao longo de 40 anos de vida literária, bem como a constante procura da forma adequada que Luísa Costa Gomes persegue em cada conto”.
Nestas 13 histórias (em que se integra um conto, na verdade, escrito em verso), 3 foram anteriormente publicados, os restantes 10 são inéditos. Em todas ressoa um tema comum, a água, ou como refere a autora num breve texto na contracapa: “metem água”. Neste conjunto de textos, em que a água é, quase sempre, o elemento comum, e nos aparece nas mais variadas formas – doce, salgada, torrentosa ou sinuosa, no oceano ou no duche –, a autora ora submerge por trás de terceiras pessoas ora irrompe na primeira pessoa, onde, em alguns contos, parece até falar-nos mais ou menos honestamente de projectos de escrita e métodos do ofício. «Gandembel», narrado na primeira pessoa, fala-nos inclusive dos projectos de escrita do pai da narradora. Note-se, por exemplo, quando se refere ao conto chamado «Os Surfistas», que aqui não aparece mas é uma ideia há muito almejada: «tema que eu ando há muito para tratar nesta colecção de contos» (p. 167). Ainda nesse mesmo conto, é possível constatar como a água serve como condutor da memória e se metamorfoseia em variados estados numa só passagem:
“O duche que tomou, vinha a pensar nele com o corpo todo desde que descolara de Gandembel. A fantasia desse chuveiro fresco, que faz parar o tempo, sacramental como um renascimento, uma renomeação, vem da infância, da praia de Paço d’Arcos, da baía deliciosa onde ele aprendeu a nadar e uma vez se ia afogando à vista de todos, sem ninguém dar por isso. «O melhor da praia», dizia muitas vezes, «é o duche depois da praia!» Prazer com prazer redobrado. Quero acreditar que no frigorífico da casa houvesse uma Coca-Cola e muito gelo. Que ele a tenha tomado de pé a meio da saleta, na penumbra, a deixá-la actuar, a deixar-se reviver.” (p. 167)
A água, além de condutora da memória, pode também representar uma dissolução, um oblívio morno do ser, quando a narradora (sem nome) de «Desertos, Enseadas, Covas Abertas» mergulha na piscina (de alguém chamado Elizabeth): “A água está morna e faz-me querer ser água e regar cada torrão do jardim. Ao cair do sol vou cavar buracos e espremo as lágrimas lá para dentro. Saltam dos olhos, as pequenas idiotas. E aspiro a que ao terceiro dia esteja tão seca e ressequida que possa flutuar como um lanho e dissolver-me à superfície.» (p. 79)
Ainda que a presença da água seja mais forte no conto «Afastar-se», que inaugura e dá nome a esta colectânea, onde Giulia nada para o mar alto, como expressão do seu desejo de liberdade, como que em fuga às convenções burguesas, a água como símbolo nem sempre é omnipresente nestes textos, sendo até perfeitamente secundária. Tal não afecta em nada a mestria literária da escrita. A própria autora parece também refractar-se nestes textos, levantando véus acerca da sua escrita. Desses textos onde se reflecte à superfície a natureza da sua própria criação, destaque-se «Sombra», onde uma escritora chega à ilha de Saint Croix, nas Ilhas Virgens Americanas, na senda de Regine Olsen, que lá viveu durante 5 anos no século XIX. Regine estivera noiva de Soren Kierkegaard durante um ano, e foi depois abandonada. Se Kierkegaard parece deixar a ideia de tomar Regine enquanto mulher para depois a deificar como sua musa, a autora-narradora também procura no fantasma de Regine a inspiração de um romance, apenas para, no final deste conto, abandonar essa ideia: “no momento seguinte já percebi que estou realmente perto dessas águas, que a qualquer hora, acordada e senciente, continuarei o inevitável processo de distância&diluição – e decido não escrever esse romance. Abandonado o romance, pego nas histórias.” (p. 106)
Quando a narradora regressa a casa, pouco antes de se declarar a pandemia, ainda persiste na pesquisa dessa vida, e à relutância de Regine em se mostrar, quando a procurava na sua casa na ilha de Saint Croix, responde-lhe com a sua “indiferença em procurá-la”: “O romance abandonado ainda me dói, mas vai-se afastando, num amuo de génio incompreendido, belo como todas as coisas perdidas e de novo reduzidas à sua impossibilidade.” (p. 106)
Entre o sonho e a presença fantasmática de nomes como Lord Byron, Pirandello ou Kierkegaard, é sempre um prazer mergulhar na escrita de uma das melhores contistas da literatura contemporânea portuguesa e uma das grandes defensoras do género, tendo sido directora da revista Ficções, entre 2000 e 2008.
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