Acolher, da autora irlandesa Claire Keegan, foi o segundo livro publicado pela Relógio d’Água, com tradução de Marta Mendonça, foi vencedor do Davy Byrnes Irish Writing Award.

Neste conto (pelo menos assim designado dentro do conjunto da prosa da autora), uma narrativa ainda mais breve do que a anterior, com cerca de 65 páginas, o impacto causado no leitor não é menor, e deixa-nos a remoer a história durante muito tempo.

Narrada pela perspectiva de uma menina, perceberemos, gradualmente, que está a ser levada para viver com uma outra família, os Kinsella, numa quinta na zona rural da Irlanda. O tempo é indefinido, à parte uma breve alusão à C.E.E., o que pode remeter-nos para o ano da adesão da Irlanda.

A esta menina, cuja idade ou nome nunca saberemos (apenas que anda na escola), que chega como uma “criança cigana” e rapidamente se transforma, não lhe é dito – nem a nós – se é uma situação temporária ou permanente, pois ela fica sem saber quando regressará, ou se regressará. O certo é que esta menina, não obstante a sua inocência e desconhecimento da realidade que a cerca, é capaz de pensamentos que a tornam adulta: “Quem me dera estar lá fora, a trabalhar, pois não estou acostumada a estar sentada quieta e por isso não sei o que fazer com as mãos.” (p. 13) Uma inquietação que parecer remete para o livro anterior da autora, na forma como encadeia na narração a enumeração da descrição de simples gestos e acções quotidianas, em que as personagens avançam mecanicamente, de uma tarefa para outra, em jeito de fuga à profundidade, que as pode engolir como um abismo, e como estratégia de sobrevivência assente nessa “mecânica dos dias”.

Nos dias que vê passar nessa casa desconhecida, a sua nova morada de gente estranha e silêncios ou olhares inquietantes, os seus pais adoptivos tratam-na, no entanto, com todo o carinho. Há afinal um enigma que terá de ser deslindado: “sinto o sabor a algo sombrio no ar, algo que ameaça cair e explodir e mudar as coisas” (p. 40). E, páginas depois, a intriga tomará de facto nova feição. Da mesma forma que, perto do fim, os estranhos acontecimentos que se precipitam, ou precipitados, por esta menina, nunca explicados ou indiciados, deixam, uma vez mais, uma inquietante incerteza a pairar.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.