A Uma Hora tão Tardia, com tradução de José Miguel Silva, é um igualmente pequeno volume que reúne três contos de Claire Keegan. Um tríptico de contos breves sobre temas diversos. Se no primeiro conto, que dá nome ao livro, se fala de amor, desejo, traição, temas que ainda se parecem repercutir no último conto, já o terceiro conto envereda por vias bem distintas. Histórias breves que não têm o impacto da novela e conto publicados anteriormente, é certo, mas que nem por isso deixam de ter em comum a escrita despretensiosa, despida até ao osso, escorreita e incisiva. Ora levemente ora mais declaradamente, estas três histórias partilham a misoginia, o machismo na sociedade, e a violência latente dos relacionamentos entre homens e mulheres.

Em «A Uma Hora tão Tardia», temos Cathal um protagonista de sexo masculino, um funcionário burocrático, que enfrenta um longo fim de semana. Paira sobre ele um sentido de derrota, ou a sensação antagónica de ter escapado a uma ameaça imprecisa e indefinida, que só gradualmente nos é revelada, em pequenas analepses. A autora faz-nos partilhar da perspectiva deste homem, mediano, tacanho, obsoleto, justamente para melhor ilustrar o porquê de ter sido abandonado nas vésperas do casamento, sendo que agora se divide entre o saudosismo e ao alívio da vida que podia ter tido ao lado da mulher que deixou fugir.

A segunda narrativa é a mais curiosa, até porque toma como protagonista uma mulher que se recolhe para poder escrever, mas que acaba por fazer tudo menos escrever, até porque não a deixam. «A Morte Lenta e Dolorosa» acompanha esta escritora numa residência artística, numa casa onde viveu Heinrich Böll, e tem um encontro com um estranho homem que se revela ser um académico, que lhe guarda um rancor quase inexplicado. A ela, como escritora, resta-lhe encontrar formas de sublimar e vencer aquele ódio e mesquinhez de um homem que não a considera à altura, quase de certeza simplesmente por ser mulher, da honra que lhe foi conferida.

«Antártida» conta um episódio na vida de uma mulher casada que viaja para fora e procura descobrir como é dormir com outro homem. Narrativa que poderia ser confundida como moralista, dado o seu negro desfecho. Mas talvez seja simplesmente a história de uma mulher à procura de si mesma no reflexo do outro. O problema é que o outro nem sempre nos devolve o nosso reflexo da melhor forma.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.