O livro da autora sul-coreana Han Kang venceu o Prémio Man Booker International deste ano, apesar de ter sido publicado na Coreia do Sul em 2007. A tradução é que apenas chegou este ano ao público internacional graças a uma jovem que basicamente aprendeu coreano para conseguir traduzir o livro e só pelas primeiras 10 páginas a publicação do livro foi comprada por uma editora. Para minha grande surpresa, descobri ainda que existe um filme coreado baseado no livro lançado no ano de 2009 e que chegou ao Festival de Sundance em 2010. A autora tem ainda outra novela adaptada ao cinema, tendo escrito contos e dois romances antes de A vegetariana.
De facto, bastam as primeiras páginas para ficarmos imediatamente cativados por esta história de uma mulher, uma dona de casa banal e que o próprio marido mal conhece, de tal modo se move pela vida de forma silenciosa e passiva, até que certo dia espalha toda a carne e peixe do frigorífico pelo chão da cozinha e anuncia ao marido que vai ser vegetariana. Quando o marido reage com espanto ela própria não sabe explicar os seus motivos, dizendo apenas que teve um sonho.
O livro é escrito em 3 partes, e pelos vistos a autora tentou fazê-lo, durante um período de 3 anos, de modo a que as várias partes fossem autónomas, ainda que interdependentes, como 3 contos sequenciais, com protagonistas distintos, ainda que toda a intriga gire em torno de Yeong-hye. Primeiro, esta é-nos apresentada pela perspectiva do marido, que reage com brutalidade à transformação da mulher, depois é através da óptica filtrada pelo desejo do cunhado, artista que vai aliás acabar por alimentar na cunhada um desejo de metamorfose mais profundo, até, por fim, ser através da irmã quatro anos mais velha que encontramos Yeong-hye agora hospitalizada a recusar-se por completo comer. O médico usa o diagnóstico anorexia nervosa mas na verdade aquilo a que Yeong-hye realmente aspira é agora transformar-se por completo numa árvore. Entretanto, devido à sua esquizofrenia ou a este processo de recuperação de identidade, de retrocesso às origens da pureza do ser, toda a família de Yeong-hye soçobrou: marido, pais, irmãos, cunhados. A metamorfose que se processa em Yeong-hye quando se recusa terminantemente a comer carne começa a ter implicações físicas bem visíveis, o que leva o marido e a família a duvidar da sanidade da protagonista que aliás acaba por ser hospitalizada e depois internada, em consequência de um confronto com os mesmos – note-se aliás o choque que toda a gente parece sentir face à sua decisão de se converter ao vegetarianismo (aparentemente uma questão culturalmente impossível no país da autora).
A escrita é trabalhada, depurada, sem floreados ou rodeios, mas extremamente visual, cinematográfica aliás, e há imagens que de facto serão difíceis de esquecer. E a história, que quase nunca dá voz à personagem que se diria principal, a não ser quando esta nos narra os sonhos que teve, acaba por deixar o leitor numa periclitante linha entre o desejo e a aversão. Tirando pelo desejo de protecção da sua irmã, mas que é também quem a manda hospitalizar, só o cunhado demonstra simpatia pela vegetariana, e essa simpatia está claramente toldada pelo seu desejo obsessivo, como se a cunhada que ele descobre ter uma mancha mongólica, algo que deveria desaparecer durante o crescimento da criança, fosse apenas um veículo das suas fantasias.
Assim que iniciei a leitura deste livro ecoavam em mim as palavras de um ensaio que li recentemente de Alberto Manguel, em O Bosque do Espelho, sobre a literatura erótica:
«Confrontada com a arte de fazer com uma variedade espantosa de objectos e de temas, actos e variações, sentimentos e receios; (…) andando sobre uma lâmina entre a pornografia e o sentimentalismo, a biologia e a prosa rebuscada, o recato e o excessivamente explícito; ameaçada pela intenção das sociedades de preservarem as aristocracias do poder estabelecido através das forças de censura da política, da educação e da religião, é um milagre que a literatura erótica não só tenha sobrevivido todo este tempo como se tenha tornado mais ousada, mais inteligente, mais confiante, perseguindo uma infinidade multicolor de objectos de desejo.» («As portas do Paraíso», pág. 88).
Apesar de, na segunda parte, narrada a partir da perspectiva do cunhado, termos um momento extremamente erótico como há muito tempo não encontrava em literatura, A vegetariana não inicia como um romance erótico. Antes lembra um livro de Murakami com o seu fantástico subtil que se imiscua por entre o quotidiano banal e monótono – o que o levou a ser confundido com os realistas mágicos -, como O Sono, em que uma mulher deixa subitamente de conseguir dormir o que leva a uma espécie de existência dupla, vivida de dia e de noite. A dada altura, aliás, tanto Yeong-hye, a protagonista, como a irmã deixarão de dormir, mas por motivos diferentes: uma porque receia os sonhos ou visões nocturnas que lhe chegam, a outra porque está deprimida, apesar de levar uma vida de sucesso e aparentemente perfeita, cumprindo com exemplaridade os seus papéis sociais.
A violência imiscui-se por diversos momentos ao longo do livro, inclusivamente quando a tentam prender na cadeira e a forçam a comer um bocado de porco, abrindo-lhe a boca à força, até o pai lhe dar uma bofetada quando ela cospe a carne; o momento em que ela se corta perante a mesa de família; o abuso sofrido em silêncio por ambas as irmãs quando os respectivos maridos as forçam a ter relações. É aliás pelas suas visões violentas, e tanto nas visões como na realidade, encontramos como constante o jorro de sangue, que a personagem decide renunciar à carne, e, no seu processo gradual de emaciamento, à vida em geral, querendo apenas enterrar a cabeça no chão, sentir os braços a criar raízes e estender as pernas para o ar como uma copa de árvore que cresce na direcção do sol. A vegetariana pode assim ser lido como um manifesto (diria mesmo feminista) contra a violência e de encontro da pureza de ser não-humano: Yeong-hye é aliás descrita várias vezes como tendo a serenidade de um monge, sendo que a violência nela só se manifesta quando é violentada.
No fim, as interrogações que A vegetariana deixa são: até que ponto somos realmente sãos na sociedade em que vivemos, até que ponto somos livres para seguir os nossos sonhos, até que ponto podemos fazer com que os outros respeitem as nossas decisões, mesmo que elas impliquem actos que aparentemente atentam contra a nossa vida, qual é a barreira entre a loucura e o desejo são. Nas palavras da própria autora: «I was thinking about the spectrum of human behavior, from sublimity to horror, and wondered, is it really possible for humans to live a perfectly innocent life in this violent world, and what would happen if someone tried to achieve that?».
Penso que nunca li qualquer livro de um escritor coreano, a trama, pelo que escreveu no post, faz-me lembrar a estranheza com que vi alguns filmes de autor chineses. A Coreia, ou as Coreias, são países que ainda não percebi o que são, talvez por isso este livro me possa dar pistas sobre a mentalidade deste povo.
Tenho um amigo que insiste muito comigo para ver cinema coreano – ele viveu na China – mas ainda não tive muito tempo. Quanto a autores coreanos de facto não se conhecem muitos. Mas vou estar atento a esta senhora.
Aqui fica uma listagem de filmes coreanos:
http://www.imdb.com/list/ls052519910/?start=1&view=detail&sort=user_rating:desc&defaults=1&scb=0.38412933982225006
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