Salman Rushdie é um nome sobejamente conhecido pois os media cobriram a sua vida durante quase uma década, enquanto o Islão prometia uma recompensa de dois milhões a quem matasse esse escritor arrogante, prepotente, mal-encarado… A primeira obra deste autor britânico, nascido na Índia, foi Os Filhos da Meia-Noite, uma narrativa alegórica sobre o nascimento da Índia, ou seja, os primeiros trinta anos após a independência enquanto colónia inglesa, contestando o poder autocrático aí exercido e reflectindo igualmente sobre as tensões religiosas entre hindus e muçulmanos. Não é acidental que o nascimento do protagonista Saleem coincida com a hora exacta da independência da Índia. É uma leitura marcante, nomeadamente devido ao humor de situação, que serve um certo propósito de parodização e de reescrita da História, o que valeu justamente ter sido premiado com o Booker Prize, em 1981, bem como o melhor Booker a ter sido premiado nos 25 anos de vida do prémio, e, ainda, o Best of the Booker, em 2008. Os Filhos da Meia-Noite só chegou a Portugal em 1989 e foi recentemente adaptado ao cinema, realizado por Deepa Mehta, tendo estreado já em vários países (crê-se que estreará nos ecrãs portugueses em Setembro). Saleem possui o extraordinário dom de comunicar por telepatia com os outros filhos da nação, igualmente dotados de estranhos poderes, o que, entre outros aspectos, leva a classificar esta obra como realismo mágico. Aliás, Salman Rushdie é um autor tão referenciado na crítica literária como o colombiano Gabriel García Márquez. Rushdie alega justamente que para expressar a realidade sócio-política do país em que viveu até à adolescência, sendo que depois foi estudar para a Grã-Bretanha num colégio e possui nacionalidade britânica, o realismo e a sua linguagem são desadequados e obsoletos. Existem episódios abolutamente indeléveis e hilariantes como o momento em que a mãe de Saleem e outra mulher se digladiam entre si, conforme se aproxima a meia-noite do dia que assinalará justamente a independência da ex-União Indiana, enquanto uma mulher faz força para a criança nascer antes do tempo, para receber o prometido prémio, enquanto a outra tenta aguentar a criança que já está em vias de sair. Outro momento emblemático é o do penico voador, que substitui aqui outros objectos mágicos próprios das narrativas fantásticas das Mil e Uma Noites e que pululavam nas histórias que o autor ouvia em criança da boca do seu pai, e depois de ter sido aparentemente esquecido capítulos depois acaba por aterrar na cabeça da personagem.
A obra Os Versículos Satânicos, por outro lado, é uma alegoria que remete para uma reinterpretação do Islão e em que, inclusivamente, o autor reescreveu passagens do Corão. Esta narrativa tem início com o diálogo entre Gibreel e Saladin, em plena queda livre de um avião, personagens que parecem remeter para o anjo Gabriel e Satã. Foi com este livro que a própria realidade bateu de chapa na cara do autor pois valeu-lhe, em 1989, uma condenação à morte, com a fatwa do ayatollah Ruhollah Khomeini, que o levou a esconder-se e a andar sob permanente protecção de uma força policial. A obra Joseph Anton – Uma memória é justamente um relato extenso e denso em que o autor faz um balanço dos cerca de nove anos em que viveu arredado do mundo e teve de mudar de nome, escolhendo a combinação de dois nomes próprios dentre alguns dos seus escritores favoritos: Joseph Conrad e Anton Tchékov. Talvez por ser forçado a estar distante do próprio filho e do seu círculo de amigos e colegas, que constituíam uma família por opção que substituía a que ele deixou na Índia, ou por ter sido forçado a esconder-se do mundo adoptando um nome de código, enquanto que pelo mundo inteiro tantos jornalistas, escritores e políticos se referiam a Rushdie como se fosse ele o culpado, o merecedor, o Satã que brincou com o fogo, talvez por ter deixado de se reconhecer a si próprio, este livro de memórias é completamente narrado na terceira pessoa. O livro fornece minuciosa informação em que podemos acompanhar os momentos mais decisivos durante esses nove anos de pesadelo, em que toda a gente se achava no direito de o criticar e acusar, enquanto o próprio Reino Unido sob governação da Dama de Ferro confessou não poder fazer nada enquanto não mudasse o regime no Irão, conforme afirmou Margaret Thatcher, enquanto o tocava no braço. Devido a interesses económicos e políticos (como os acordos comerciais que permitem a compra de petróleo), diversos países receavam incorrer na fúria do Islão por causa deste “autorzeco” que tinha decidido contestar abertamente o Corão e o fundamentalismo islâmico, pois “ele sabia bem o que estava a fazer”, pois, afinal, ninguém deve ter a liberdade de expressão para dizer abertamente o que pensa ou o que acha, nem sequer atrever-se a colocar em causa verdades sagradas. Basta lembrar o caso de José Saramago quando foi similarmente atacado por ter escrito O Evangelho segundo Jesus Cristo. Em contrapartida houve diversos amigos que se mantiveram sempre ao seu lado, por vezes disponibilizando as suas próprias casas, como Ian McEwan, Angela Carter, Gunter Grass, Nigella Lawson, Harold Pinter, etc. Enquanto isso o Governo britânico evitava a sua questão delicadamente e uma visita à Casa Branca onde foi recebido por Bill Clinton foi delicadamente arrastada e estrategicamente referida mas nunca fotografada pois isso já seria ir longe de mais. Entretanto o mundo foi deixando que a liberdade de expressão e o direito à revisão de toda e qualquer “verdade oficial” fosse posta em causa, o que resultou num atentado ao World Trade Center em 2001, com uma prequela em 26 de Fevereiro de 1993.
O próprio processo de escrita do autor viu-se seriamente comprometido enquanto via a sua vida a ser controlada e acompanhada permanentemente por polícias e motoristas, “fazendo o Estado gastar consigo rios de dinheiro”, enquanto na verdade ele tinha que ir alugando casas temporárias que tivessem determinadas características ditadas por outrem que poderiam ajudar a manter a sua segurança e só poder comparecer aos eventos para os quais a força policial o autorizava. Todavia o autor acabou por escrever Harun e o Mar de Histórias, um romance infanto-juvenil a pedido do seu filho, Zafar, a que se seguiu anos depois Luka e o Fogo da Vida.
O outro grande romance que se seguiu, com este complicado parto, foi O Último Suspiro do Mouro: a saga de uma poderosa família que diz descender de Vasco da Gama, num torvelinho de relações com outras famílias como os Lobos, os Mirandas, os Meneses, brincando com a presença e a colonização portuguesa na Índia. A ironia é absolutamente deliciosa, quando se diz que o encontro do Oriente e do Ocidente (uma temática cara ao autor) começa afinal com um grão de pimenta, de onde se expande uma rocambolesca saga familiar em que as barreiras de judaísmo, cristianismo, islamismo e hinduísmo são dissolvidas em nome do amor.
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