Esta pequena pérola constituiu a estreia do poeta e crítico literário Eduardo Pitta na ficção, em 2000, e é publicada agora Dom Quixote nesta 3.ª reedição, a partir da revisão feita à 2.ª edição em 2007. Persona é, como o título indica, uma revisitação da memória pessoal do autor, pois há uma certa quota de autobiografia, e é uma «versão moderna de uma educação sentimental». Classificado como uma «trilogia de contos morais», este livro é, na verdade, um pequeno romance em que cada micronarrativa corresponde a uma fase de vida da mesma personagem. Afonso Sacadura, primeiro aos 12, depois aos 18, e na terceira e mais longa narrativa, como uma curta novela, aos 22, vive o seu coming of age, em que, ironicamente, o evento que parece determinar o início da sua infância ou inocência é quase idêntico ao que ocorre de novo em jovem adulto. Em 1962, Afonso é punido por ter tido relações contranatura com um colega. Apesar de Tiago ser 10 meses mais velho, mas por ser um jogador de basquete, um belo rapaz louro naturalmente masculino, a culpa recai inteiramente sobre Afonso, mais efeminado, conforme apontado pelo médico que o chama para examinação quando lhe pergunta porque é que ele cruza as pernas, «atitude tão pouco masculina» (p. 18). Esse mesmo psiquiatra que despe as calças e leva a mão de Afonso à sua braguilha, de onde retira o seu pénis erecto e sugere a Afonso que pense nele como um sorvete que pode ir lambendo e mordiscando gentilmente, para se poder avaliar a sua «capacidade de resposta» (p. 21). Este evento de assédio e culpabilização, que é rapidamente narrado, numa linguagem que tem tanto de estilizada como de crua e directa, pode ser esquecido rapidamente conforme passamos para o segundo conto, em que Afonso viaja pelo Kalahari em 1967 com Ralph, um típico sul-africano branco com ar de jogador de râguebi. Mas em Pesadelo, o último conto da trilogia, com 50 páginas, enquanto os outros rondam a dezena de páginas, Afonso parece reviver o episódio de antes, mas agora nas devidas proporções, em que se vê como arguido num auto colectivo sobre homossexualidade nos três ramos das Forças Armadas, no Moçambique de 1971, onde há muitos «tubarões» (p. 49) envolvidos, incluíndo um tenente-coronel e um capelão. É aí que Afonso descobre o nojo, quando se torna vítima de uma investigação descabida, que aliás convirá esquecer como se nunca tivesse acontecido, dirigida exclusivamente a homossexuais «suspeitos de pouca simpatia pelo regime» (p. 80), pois ao contrários dos heteros são «facilmente manobráveis» (p. 59), além de que se a FRELIMO visse uma foto do sargento com a boca cheia isso iria comprometer seriamente a guerra.
O que impressiona na escrita de Eduardo Pitta é que na vivência da sexualidade de Afonso, e dos que o rodeiam, não há cedência à vergonha nem ao pudor, até porque Afonso move-se no contexto social da alta burguesia onde os podres são imensos, independentemente da orientação sexual de cada um, pois também temos homens que em menos de 24 horas despacham em viagem, como se fossem bagagem, mulher e filhos para aproveitar uma nova paixão, e mulheres sobejamente conhecidas pelo seu apetite insaciável por jovens bem constituídos de 20 anos. Inclusivamente num mundo de etiqueta onde é sabido que «um homem não bebe Sauternes» (p. 74), a homossexualidade de Afonso parece não chocar ninguém na família, embora o pai considere tal como «um desporto arriscado» (p. 82).
Persona é uma narrativa ousada e corajosa em que se reconta os últimos anos da guerra colonial a partir da perspectiva de uma minoria, melhor dizendo, de uma perspectiva outra. Tal como escritoras mulheres escreveram sobre a guerra colonial na sua perspectiva íntima, pois mesmo não tendo participado activamente na guerra, em pleno combate, nem por isso a vivenciaram menos. Uma das cenas mais memoráveis (também exemplarmente ilustrada na adaptação cinematográfica da obra) é o tiroteio gratuito aos flamingos em A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, que aliás viveu em Moçambique nesse tempo, praticado pelos dois militares, como se de um desporto se tratasse, na presença das suas mulheres, Eva Lopo e Helena de Tróia (e repare-se na força simbólica destes dois nomes, associados quer ao mito, quer à guerra, quer ao princípio dos tempos). Eduardo Pitta, dizíamos, escreve agora numa perspectiva queer (para fazer uso de uma palavra já em desuso, ligada aos estudos de literatura gay) sobre o que significou ser homossexual em tempos de guerra e de tirania, ao mesmo tempo que, conforme se percebe na última frase, se prenuncia já o final dos tempos de então, com a queda de um Estado normativo e policiado, o término de uma guerra sem sentido, e a subsequente descolonização e liberdade.
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