Maria João Neves, nascida em Moçambique em 1971, revisita o passado familiar no seu país natal, em Os Moçambichos, um livro com bichos e feras dentro que justapõe duas gerações, ilustrado por Jana Mélida e publicado pela Sereia Editora. A Joana vive num mundo bipartido entre as pequenas histórias que vive na escola junto dos colegas e as grandes histórias que ouve em casa pela avó Aida e a tia-avó Ticha. A menina vive aliás com a nítida certeza de que se relatar aos colegas aquilo que lhe contam em casa, ninguém acreditará nela, mas são também estas mesmas estórias que lhe abrem os olhos para os vastos horizontes do seu pequeno mundo. Simultaneamente, a autora consegue a pequena proeza de nos fazer ver o mundo pelos olhos de Joana, sem infantilizar nem simplificar. O humor joga ainda um papel central na narrativa.

Ao jeito africano, esta narrativa assenta no que Joana ouve contar. Até porque todas estas histórias assentam na memória e na oralidade: delas não ficou registo fotográfico num tempo em que as câmaras fotográficas eram raras e caras. É também esse o objectivo deste livro, registar por escrito uma memória de um tempo perdido, dos cheiros, das cores e do exotismo de lugares mágicos como o Lago Niassa ou o Buzi, aliando a história à ilustração e à cor. E subtilmente introduz-se mesmo uma foto que, ironicamente, acaba por contribuir para a credibilização de uma das histórias mais insólitas: de quando a tia adoptou duas crias de leopardo, a Linda e a Princesa – um dos animais mais esquivos do continente africano. Muitas vezes, sobrepõe-se ao nome técnico dos animais a alcunha pela qual eram conhecidos por lá ou os nomes com que a família os apelidou, como o Dom Fuas ou a Xerreca. Quase de forma gradativa, cada história é um pequeno capítulo em que os animais que nela participam vão subtilmente crescendo de tamanho, das aranhas e das térmitas ao tubarão e ao crocodilo, até chegar ao leão, o rei da selva.

Lídia Jorge afirma: «Este texto é quase um roteiro de zoologia fantástica com a humanidade ao fundo. A humanidade representada pela avó e pela tia-avó. Mas o motor das cenas, quem as faz narrar, é a criança, ou a memória dela. A memória da criança curiosa e admirativa, fascinada pela estranheza e pelo perigo. As histórias são de revelação do exótico, seu inesperado, seu perigo de alarme: Jagra, elefante bebé, macaca voadora, crocodilos, orangotango, tubarões, leõezinhos, leõzões… A tensão é feita entre a curiosidade da criança e a lembrança das idosas. A distância do tempo remete para uma geografia animal e telúrica que não mudou apesar da civilização ser outra. Nutre-se dos olhares contrastivos: o da criança e o das anciãs; o do passado africano e o do presente português.»

Maria João Neves nasceu em Lourenço Marques em 1971. Doutorada em Filosofia Contemporânea, é investigadora da Universidade Nova de Lisboa. Tem publicados livros e artigos científicos, é autora do romance Troika-me (2015), e colabora com o Cultura.Sul. Dedica-se à filosofia, à escrita literária e ao ensino de yoga.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.