Fica uma amostra de um artigo a partir de uma comunicação sobre Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo, de Luis Cardoso de Noronha – um livro extraordinário (em todas as acepções da palavra) publicado em 2001 pela Dom Quixote:

No dia do baptismo de Beatriz, a «aglomeração de gente» é tal que «o acontecimento antes de mais parecia o dia do juízo final», «um dia especial porque era o dia em que se comemorava a assunção de Nossa Senhora aos céus. Não era todos os dias que se poderia ter uma coincidênciadessas. Padre Santa dizia que, ou era desta que me baptizava e eu aproveitava a boleia da Virgem, ou eu ficava em terra e eternamente gentia. Estava lá mais gente do que ele esperava, inclusive pessoas que tinham morrido durante as guerras. Todos me queriam ver. Apresentaram-se com todos os apetrechos e alguns provavelmente tiveram de ir às aldeias mais remotas para recuperarem as respectivas partes corporais. (…) Os que não conseguiam colocar as respectivas cabeças nos seus lugares tinham-nas nas mãos. (…) Padre Santa fez então o louvor do labor do meu pai por ter mobilizado tanto catecúmeno, sendo que alguns vieram directamente das catacumbas.» (p. 114-115)

Padre Santa finalmente dá-lhe o nome de Beatriz e coloca-lhe uma venda nos olhos porque «eu já tinha visto tudo. Doravante não precisaria mais de olhos para ver.» (p. 116)
Mas depois repara «no lento aproximar da multidão dirigindo-se para o altar. Todos me queriam tocar e provavelmente me quereriam ver com olhos bem abertos. (…) E vendo que não paravam e temendo um rapto ou linchamento afastou-os, aos mortos com sal e água benta e aos vivos com a maldição do inferno.» (p. 116)

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.