O Colégio, publicado pela Dom Quixote, é o segundo romance de Cristina Almeida Serôdio, depois de A Casa das Tias (2017), finalista do Prémio Autores SPA Melhor Livro de Ficção Narrativa.

Narrado na terceira pessoa, mediante pequenos retratos compostos em breves textos, que se podem ler como contos, subjaz ao livro uma lógica narrativa, ainda que nem sempre se siga uma cronologia linear, em que se narram episódios da vida num colégio interno, uma instituição com mais de 50 anos e que tem Salazar como «amigo da casa», que pretende formar as futuras mães e donas de casa, o «grande cargo da vida» (p. 200).

Madalena rapidamente descobre, ao entrar no colégio no ano de 1969, que aquela «imaculada instituição» nada tem a ver com a diversão dos colégios dos livros de Enid Blyton. Ali, onde permanece sensivelmente até 1975, qualquer «excesso tem de ser contido» (p. 49), a começar pelas cores da farda: «Chegar do colégio com a cara esverdeada. Os tons melífluos do contágio, o bege amarelado da camisa, o castanho do casaco e da saia de pregas, as meias pequenas nas pernas.» (p. 181)

Antiga aluna do Instituto de Odivelas, Cristina Almeida Serôdio revisita os seus anos juvenis por interposta pessoa, ora centrada na figura de Madalena, ora na de outras colegas do colégio. A autora socorreu-se aliás de agendas suas e de informações de colegas. A intercalar com os episódios do passado no colégio, a narradora escreve sobre como as antigas alunas se reencontram em encontros de colegas, constatando como algumas parecem ter esquecido tudo e outras a advertem a não escrever sobre o colégio, para não lembrar.

O ingresso no colégio marca ainda o fim da infância, um crescimento emocional abrupto da personagem e, de certa forma, a desagregação da família. A entrada de Madalena segue-se à da irmã mais velha, e é sucedida pela ida do irmão para o Colégio Militar. Os três irmãos têm em comum com as colegas serem filhos de militares mobilizados para a guerra em África, vítimas de uma «orfandade de circunstância», determinada pelos tempos: um dos episódios é justamente a despedida do pai que a 27 de Março de 1970, sábado de aleluia, parte no Infante Dom Henrique. Apesar de Madalena viver enclausurada no colégio, esta narrativa é, simultaneamente, o retrato da vida no tempo da ditadura, uma época de ódios e desconfianças, de repressão e castigos, de clivagem social e mesquinhice, da saudade dos pais. A dor, o sentimento de orfandade precoce, determinaram aliás que a autora só se decidisse a escrever este livro depois da morte dos pais. Mas a contrabalançar a dor também há lampejos de alegria, na amizade das colegas e na admiração por algumas, poucas, professoras.

Terminada a leitura, fica a pergunta inevitável se este ajuste de contas com o passado, numa arqueologia de memórias provavelmente tão obscuras quanto adormecidas, permitiu, por fim, encontrar algum alívio.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.