MIZÉ – Antes galdéria do que normal e remediada, de Ricardo Adolfo, da Companhia das Letras, lê-se como quem vê um filme de Almodóvar.
A voz narrativa de Ricardo Adolfo é original e sobretudo aguçada, capaz de uma crítica social corrosiva em que o leitor entra na pele das personagens e sente os seus anseios e dramas sem a externalização que se julgaria adequada. Quando Mizé, a boazona de um subúrbio de Lisboa, aceita casar com o único homem capaz de a pedir em casamento, sentimos ainda assim empatia face ao seu desejo de não se deixar prender nos seus altos voos, pois ela acredita vir a ser uma estrela. Quando o Palha – note-se a ironia do nome – lança o repto, não se sabe se é por ter a cabeça quente da (melhor) queca (da sua vida) que acabou de dar ou se porque acha que Mizé foi a volta mais inesperada da sua vida. Impossível é não nos sentirmos compassivos face ao carrocel que se seguirá para Palha e que o leitor já descortina.
A narrativa discorre imparável, num registo acutilante da linguagem de rua (então é sempre «atão»), numa linha ténue e arriscada entre a paródia e a verosimilhança, conforme vamos privando com uma galeria fascinante de personagens, todas elas infelizes à sua maneira – como os clientes dos clubes de vídeo capazes de «enfiar um tiro nos cornos» mas em vez de «chacinarem a família, levantavam o último herói psicopata e com ele arrasavam exércitos de maus em menos de duas horas» (p. 169). Personagens que se situam num espectro a anos-luz de qualquer intelectualidade (Mizé, por exemplo, pratica o auto-conhecimento em questionários de revista) e têm em comum sentirem-se tão fascinadas quanto incomodadas com a segurança de Mizé – que se devota a amealhar para conseguir pôr um par de mamas maiores, o que a ajudará a subir ainda mais depressa ao firmamento das estrelas de cinema: «tudo o que queria era saltar no tempo, comprar uma passagem para dali a dois ou três anos e olhar para trás com aquele olhar vago de quem é importante e tem muito pouco medo da vida. Tudo aquilo era uma questão passageira para ela (…). Uma injustiça, no seu ver, pois para Mizé as pessoas que eram especiais deviam ter vidas especiais, e ela estava fora desse grupo por puro engano do destino e agora tinha de voltar para onde nunca tinha estado, mas devia estar, pelos seus próprios meios.» (p. 120)
Ricardo Adolfo nasceu em Luanda em 1974. Viveu nos arredores de Lisboa, em Macau, Amesterdão e Londres. De momento vive em Tóquio. Escreve para o cinema e a televisão, como é o caso do filme São Jorge. Mizé foi o seu romance de estreia, originalmente publicado pela Alfaguara e agora reeditado pela Companhia das Letras, que irá relançar gradualmente a obra daquele que é já considerado um autor de culto.
Leave a Comment