Há livros que inexplicavelmente nos atraem, ou pela capa ou pela ressonância do título. O Evangelho das Enguias, de Patrik Svensson, publicado pela Objectiva, combina o simbolismo da capa com o misticismo do título, onde conflui ainda o próprio mistério que aqui se narra, sobre um animal que se tornou, em si, uma metáfora. Tal como este tratado sobre a vida da enguia, com mais perguntas do que respostas, é também um tratado sobre a vida humana.
Em capítulos onde a história pessoal do autor, nomeadamente os momentos da sua infância em que o pai o ensinava a pescar enguias, com a própria história da enguia, de Aristóteles a Freud, com especial destaque para Johannes Schmidt, um biólogo marinho que seguiu o percurso migratório das enguias até ao Mar dos Sargaços, a narrativa serpenteia num crescendo subtil, cruzando as mais diversas áreas: da sexualidade à filosofia, da economia à culinária, da religião à ciência, e da literatura ao ambientalismo.
Da mesma forma que se esquiva, escorregadia, quando a procuramos agarrar, a enguia permanece ainda hoje, depois de séculos de observação e especulação, um mistério. Na zoologia, aliás, costuma designar-se algo insondável como «a questão da enguia». Sabe-se que faz uma longa viagem desde o Mar dos Sargaços e que a ele regressa para se reproduzir, mas não se sabe como se orienta ou como percorre 7 a 8 mil quilómetros em poucos meses, nem nunca alguém observou a sua reprodução. Hermafrodita, quando finalmente se descobriu os órgãos reprodutivos numa enguia a questão da sua reprodução tornou-se o centro do interesse científico do Iluminismo. O próprio Freud viveu dias a observar e dissecar enguias, mas foi incapaz de descobrir o seu sexo, o que pode muito bem explicar a sua desistência das ciências naturais e a sua crescente obsessão pela sexualidade do ser humano. A enguia passa por diversas metamorfoses, e prefere as águas mais profundas, vivendo pacientemente na escuridão, diz-se até que mais de cem anos, e morre provavelmente assim que se reproduz. Permanece viva a saracotear-se mesmo sem cabeça, anda no mar e na terra, e parece capaz de ressuscitar, mas recusa-se a viver em cativeiro. A sua carne tem um sabor gorduroso e «ligeiramente selvagem» capaz de deixar o narrador nauseado – e muitos de nós, eu inclusive – mas é um pilar da culinária sueca, onde se celebra até a festa da enguia tradicional, e de outros países, além de um dos alimentos mais procurados na cozinha japonesa. Uma comida caseira simples que movia a classe trabalhadora, rica em proteína e mais barata do que a carne, era procurada pelos pobres e desprezada pelos ricos. A pesca da enguia na costa sueca é uma tradição que persiste desde a Idade Média, cujo segredo é transmitido oralmente, e se tornou em património cultural. Como uma pescadinha de rabo na boca, à medida que a sua extinção parece iminente, o interesse científico pela enguia aumenta, podendo implicar a proibição total da sua pesca na Europa, o que significa, por arrastamento, que se perde parte da cultura de uma comunidade. E o mistério que sempre envolveu a enguia pode agora implicar o desaparecimento da espécie, porque tal como a sexta extinção é provocada pelo ser humano, é apenas ele quem pode encontrar respostas, se a conseguir atrair do oculto em que se esconde.
Patrik Svensson nasceu em 1972 na Suécia e é jornalista de artes e cultura no jornal Sydsvenskan. Escreveu este seu primeiro livro como uma homenagem ao pai e a um dos animais mais enigmáticos do mundo.
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