Juliet Marillier, publicada em Portugal pela Planeta Editora, é uma autora best-seller, estatuto que mantém desde o seu primeiro romance, A Filha da Floresta.
A Harpa dos Reis é o primeiro livro da nova série Bardos Guerreiros.
Mundialmente conhecida na área da fantasia histórica celta, a autora nasceu em Dunedin, Nova Zelândia, a cidade mais escocesa fora da Escócia. Os seus livros combinam romance e história, drama e fantasia, folclore e mitologia, no contexto do universo celta. Já venceu 15 prémios literários, como o prestigiado Aurealis Award. Entre diversas trilogias, destacam-se três séries de imenso sucesso: Sevenwaters, Shadowfell e Blackthorn e Grim.
Foi professora de música, responsável por um grupo coral e cantora de ópera. Começou a publicar depois dos 40 anos e nunca mais parou. A autora é membro da ordem druídica OBOD (Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas) e os seus valores espirituais reflectem-se muito na sua ficção – onde a relação das personagens humanas com o mundo natural desempenha um papel importante, assim como o poder da contação de histórias para ensinar e para curar.
Juliet Marillier já visitou Portugal e é fã dos livros de Saramago.
Esta nova série iniciada com A Harpa dos Reis retoma duas personagens da saga anterior. Blackthorn e Grim (as suas personagens mais complexas) foram assim tão poderosas para a fazer continuar a sua história?
Adorei escrever a história de Blackthorn e Grim, personagens complexas e feridas, e quando pensei na trilogia dos Bardos Guerreiros apercebi-me que podia incluir “o que acontece depois” ao escrever sobre a geração seguinte: os seus filhos. Blackthorn e Grim foram absolutamente reais para mim, por isso foi um prazer continuar a sua história.
Os seus livros seguem uma fórmula, em que cada nova história é absolutamente original e apaixonante.
«As histórias são como bolos de mel. Mal provamos um, queremos outro e outro e sempre mais.» (p. 208)
Há elementos consistentes, em particular nos primeiros livros. Gosto de incluir uma história de amor; geralmente uma jovem protagonista feminina que descobre a sua força interior ao enfrentar um desafio; e muitas das histórias situam-se em culturas célticas dentro do mesmo período histórico. Mas não acredito que os livros sigam uma fórmula, até porque muitas vezes distancio-me.
Tem razão quanto aos bolos de mel. Uma história pode ser contada e recontada de muitas formas diferentes, e alterar-se-á para se adaptar ao tempo e cultura em que se insere. Dou valor ao papel da contação de histórias como meio de ensino e de cura, o que aliás influencia a minha escrita. Recorri a um conto tradicional como ponto de partida para 5 dos meus 23 livros, mas há temas e motivos de contos tradicionais, folclore e mitologia em todos. A minha estratégia tem-se desenvolvido nestes 20 anos como autora. Nas 2 obras mais recentes o tom foi mais negro. Tenho descido mais fundo na complexidade psicológica das personagens, e criar uma perspectiva partilhada entre os protagonistas feminino e masculino.
Concilia aqui vários aspectos dos seus livros, como se tudo convergisse neste universo ficcional.
Existem definitivamente afinidades entre A Harpa dos Reis e várias das minhas séries, como Sevenwaters e Blackthorn & Grim. O exército de guerreiros tatuados que primeiro apareceu em O Filho das Sombras ganha um papel mais relevante nesta série. Essas 3 trilogias situam-se no norte da Irlanda no mesmo período temporal (ainda que esta história com elementos sobrenaturais seja inspirada na mitologia e folclore local).
Pela primeira vez fornece informações sobre o mundo dos druidas. Contudo, o tema não lhe é novo.
Tenho personagens druidas noutros livros – Broichan em As Crónicas de Bridei, e Conor em Sevenwaters. Mas entrar nos nemetons, onde vivem os druidas, e experienciar um pouco da sua vida diária é uma novidade. Não sabemos como realmente era naquele tempo, uma vez que os druidas não deixaram muitos registos por escrito, mas acredito que as cenas da vida na comunidade druídica sejam bastante fidedignas, construídas com base em pistas históricas que temos sobre o treino dos druidas, crenças e rituais da época, e no Druídismo contemporâneo.
O que significa ser um druida hoje?
Há várias ordens druídicas activas hoje, espalhadas por todo o mundo. Sou um membro da Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas. Enquanto caminho espiritual, o druídismo moderno é bastante flexível nas suas práticas e crenças. Os elementos que considero essenciais são a valorização do poder da contação de histórias como forma de ensinar e de curar; a compreensão do papel da humanidade na vastidão da natureza, o que leva a trabalho ambiental e de conservação; e a crença de que Deus ou a Deusa ou o Espírito existem em cada entidade viva, incluindo nos seres humanos, unindo-nos e sustendo-nos. Alguns druidas mantêm a sua prática de forma solitária, outros em grupos; uns praticam rituais, outros não. Quase todos adoram música, poesia e contar histórias.
«O mundo muda. As pessoas não praticam os costumes antigos nas suas vidas diárias como outrora faziam».
Parece falar dos seus livros.
É possível que uma história – numa época antiga, num mundo imaginário, ou no futuro – tenha um significado profundo e ressoe no íntimo do leitor. Ser uma história com elementos mágicos não a torna menos relevante para as nossas vidas. As velhas histórias de monstros e magia contadas há muito tempo em torno da fogueira não serviam apenas para entreter – eram igualmente concebidas para demonstrar às pessoas como podiam viver com bravura e sagacidade. Estou a contar esse mesmo género de histórias, e mesmo que chegue a um único leitor – se ele se sentir mais forte e sábio depois de ler um livro meu –, já me permite sentir que fiz o meu trabalho, como druida e como ser humano.
Os seus livros estão tão imbutidos de influências do folclore escocês e contos tradicionais que é quase errado considerá-los fantasia.
Cresci numa parte da Nova Zelândia fundada por imigrantes escoceses, e os meus antepassados são escoceses e irlandeses. Os elementos sobrenaturais dos meus livros baseiam-se sempre naquilo em que as pessoas acreditavam na época. Faço imensa pesquisa. Ainda que o mundo onde as personagens habitam seja cheio de magia, trata-se do nosso mundo real no referente à geografia, cultura, contexto histórico. Os desafios e provações que as personagens enfrentam, por exemplo a injustiça ou a tirania, são essencialmente os mesmos que enfrentamos hoje.
Existe frequentemente ajuda sobrenatural, sim, mas as histórias são sobre personagens humanas que encontram a sua própria força e sabedoria.
Quando foi a primeira vez que ouviu essas histórias?
Os meus pais eram músicos e leitores ávidos. Lembro-me de me contarem histórias do folclore e da mitologia. Ao aprender a ler essas eram as histórias que preferia. A minha família provém de países de tradição céltica pelo que tenho uma forte ligação a essas histórias e à música. Havia uma biblioteca fabulosa para crianças onde vivíamos, e eu requisitava imensos livros, particularmente as colecções de contos tradicionais de todo o mundo de Andrew Lang. Esses aspectos tiveram um forte impacto na minha escrita.
Ainda que este livro seja anterior à pandemia, transmite a mensagem de nos reconectarmos com a natureza, a fé, a arte.
«Esta canção deve constituir uma ponte entre o Povo Encantado e o povo humano. (…) Deve recordar a todos que em épocas de dificuldades sobreviveremos apenas se confiarmos e nos respeitarmos um ao outro.» (p. 212)
Vivemos tempos muito difíceis – não só pela pandemia, mas pela ameaça iminente das mudanças climáticas. Estamos à beira de um precipício, perto de destruir este mundo precioso e belo devido à ganância e à intolerância. A confiança e o respeito são essenciais para um trabalho colaborativo da humanidade face à crise, em vez de continuarmos com jogos de poder e nos recusarmos a aceitar o quão séria é a situação. Devemos respeitar-nos mutuamente e respeitar o mundo. Pode ser essa a mensagem. Gostaria que os políticos a ouvissem.
Perguntavam muitas vezes a Marion Zimmer Bradley: «De onde vêm as ideias para as suas histórias?». De onde vêm os seus sonhos – aqueles que nos faz sonhar com a sua ficção?
Penso que os sonhos nascem do meu amor pelo folclore e pela mitologia, da minha crença de que existe magia e mistério no mundo real – basta abrirmos as nossas mentes. Houve grandes períodos da vida em que enfrentei imensos desafios, mas consegui preservar (ou redescobrir) a sensação de maravilhamento que tinha em criança ao ler, e isso transparece nas minhas histórias. Talvez eu tenha algum ADN de contadora de histórias, transmitido pelos meus antepassados celtas.
Começou a escrever relativamente tarde. Agora escreve um livro a cada 2 anos.
Escrevo desde que tenho idade para assentar uma caneta num papel, e fui uma escritora bastante assídua em criança. Na universidade decidi estudar músicas e línguas, depois estive ocupada a criar 4 filhos enquanto mantinha diversos trabalhos, e só voltei à escrita criativa aos 40. Sempre gostei de ler, e como professora de música e como funcionária pública, continuei a escrever. Depois do meu casamento terminar, decidi escrever uma versão de um conto de que gostava muito, e nos 3 anos seguintes, enquanto mantinha a tempo inteiro um trabalho administrativo, escrevi o meu primeiro livro, A Filha da Floresta, escolhido pela editora Pan Macmillan. Foi o início da minha carreira de autora. Em média, escrevo um livro por ano desde então. Tive sorte em poder abdicar do meu trabalho, 4 anos depois do meu primeiro livro, e tornei-me escritora a tempo inteiro.
É muito activa – com trabalho comunitário, a socorrer cães, aulas de escrita. Como é que consegue tempo para escrever.
Escrever é a minha principal ocupação e encaixo as outras actividades conforme posso. Como trabalho em casa, as outras actividades permitem-me deixar regularmente a secretária e interagir com pessoas. Devido à pandemia não tenho feito oficinas de escrita ou eventos públicos, mas interajo bastante com os meus leitores através do Facebook. O jardim e os cães que resgato ajudam-me a centrar. Infelizmente, a minha pequena matilha está agora reduzida a um cão… os dois mais velhos morreram este ano.
Autores e livros favoritos?
Tenho lido imensas histórias de crimes. Sou uma grande fã de Anne Cleeves, autora das séries Shetland e Vera, adaptadas a séries populares. Também gosto de Elly Griffiths. Gosto de romances que combinem excelente prosa com uma história cativante. Dois dos mais recentes que li de fantasia são Circe, de Madeline Miller, e The Binding, de Bridget Collins – complexos, memoráveis, maravilhosamente escritos.
Esteve em Portugal em 2013. Foi a única vez? Que memórias levou?
Visitei Portugal 2 vezes a convite da minha editora. Viajei até Sintra com leitores do grupo Mundo Marillier. Adorei os antigos palácios e a beleza natural envolvente. Os edifícios em Lisboa com os seus mosaicos decorativos são lindíssimos. É uma cidade magnífica debruçada sobre o rio. Adorei poder conversar com os meus entusiásticos leitores, não só nas sessões promovidas, mas também em contextos mais informais. O café português é fantástico! Especialmente com um pastel de nata. Tenho pena de que as actuais condições excluam a possibilidade de viajar.
Imagina alguém capaz de adaptar as suas histórias ao cinema? Ou a uma série?
É possível, mas é difícil ter realizadores interessados – financiar um filme é bastante dispendioso. Adorava que fosse a Jane Campion ou o Peter Jackson.
O segundo livro da saga está publicado (mas ainda não em Portugal), pelo que o terceiro deve vir a caminho…
Definitivamente! Estou a trabalhar arduamente no livro, provisoriamente intitulado A Song of Flight. Está quase terminado. A edição original em inglês deve ser publicada em Agosto de 2021.
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