A Biblioteca Municipal de Loulé, Sophia de Mello Breyner Andresen, volta a receber a rubrica “Livros Abertos”, com a apresentação do romance Eliete, de Dulce Maria Cardoso. A sessão realiza-se no próximo dia 25 de novembro, quarta-feira, pelas 19:30 horas, conduzida por Sandra Boto, docente e investigadora auxiliar do CIAC/Universidade do Algarve.
Eliete, com o subtítulo A Vida Normal, é o primeiro volume de uma Madame Bovary dos dias de hoje, cujas oportunidades de traição se multiplicam conforme o número crescentes de redes e aplicações sociais, publicado em 2018 pelas Edições tinta-da-china e ainda a aguardar sequela. Eliete, apesar desta sua vida normal, talvez demasiado normal e convencional, sente-se uma estrangeira na sua família, uma estranha dentro da sua própria vida, a condizer com o seu nome próprio de sonoridade estranha – Dulce Maria Cardoso referiu em entrevistas que quase se chamou Eliete… Esse desejo de mudança está patente desde o início, ainda mais numa narrativa que discorre na 1.ª pessoa, numa prosa torrentosa que leva o leitor de enxurrada, seguindo o fluxo de consciência da protagonista: «a culpa era sempre das raparigas desde a maçã que a Eva deu ao Adão e ponto final. Ia poder acontecer-me tudo, mas no tudo que me calhava eu saberia escolher ser diferente da mamã, da mamã e da avó, saberia escolher ser quem eu gostasse de ser.» (p. 23)
Ao longo dos primeiros capítulos vamos conhecendo Eliete, onde episódios da sua vida de criança e adolescente intercalam com o presente que se distende entre a súbita demência da avó paterna e a sua relação difícil com a «mamã». A relação entre a avó e a mãe também é tensa, sendo que parece estar latente um segredo familiar de que Eliete não dá conta – e tal é a mestria narrativa da autora que apesar de a narradora e protagonista não se darem conta, o leitor pode pressentir que sob a pele da narrativa se esconde algo negro que há-de vir à luz quando menos se espera, talvez somente no próximo volume. Ou talvez estejamos apenas a treler…
Pode-se considerar que o livro se divide em duas partes, sendo que a última parte parece corresponder a um terço do livro, a partir do capítulo (não numerado) que inicia na página 165. Essa última parte, e que será certamente mais explorada no volume seguinte, corresponde à emancipação não propriamente de Eliete (que continuará num casamento sem chama) mas pelo menos das suas pulsões e desejos até então reprimidos, até porque Eliete sabe «que não se devia pensar como se se estivesse dentro de uma fotonovela. Muito menos viver.» (p. 152) O episódio que parece desencadear essa tensão sexual por resolver foi quando «num verão de muitos incêndios» Eliete vislumbra pela primeira vez os rapazes da Torre: «Vi-os chegarem de bicicleta, em tronco nu, uns deuses a fazerem acrobacias, a pele tisnada pelo sol, os cabelos compridos, os corpos musculados, as bermudas esfiapadas, os ténis sujos.» (p. 51)
Depois de viver «os últimos vinte anos perdida de mim» (p. 64), Eliete encontra escape nas redes sociais, que é onde, aliás, parece decorrer a vida dos seus familiares, do marido Jorge, das filhas Márcia e Inês. E esse é um dos aspectos mais cativantes deste romance, a forma como a autora cruza uma crónica dos tempos de hoje com uma profunda crítica social ao Portugal pós-revolução, onde tudo é revisto, desde Salazar – e é assim que arranca o romance, com a bombástica frase «Eu sou eu e o Salazar que se foda.» (p. 11) – ao apogeu da Expo até culminar no futuro da crise. Transcrevemos parte de uma das mais fantásticas passagens do romance, eivada de um revisionismo paródico e satírico ao Portugal das últimas décadas: «nós, os nascidos depois da revolução dos cravos, éramos uns mimados que crescêramos sem saber o que era a miséria, a Guerra Colonial, o Muro de Berlim, éramos uns ingratos que nos esquecíamos de agradecer as conquistas das gerações antecessoras, andávamos em carros novos nas autoestradas acabadinhas de fazer, e mesmo assim queixávamo-nos de tudo, nunca uma geração tivera tanto, e nós, os mimados, a geração subsidiada pelos fundos comunitários, a queixarmo-nos de tudo enquanto nos endividávamos para comprar aparadores grandes demais, a Expo inaugurava dali a dias e esperavam-se quinze milhões de visitantes, dávamos outra vez mundos ao mundo, o quinto império estava novamente a chegar, nós, os mimados, tivemos autoestradas, a Expo, o Euro 2204, crédito para comprar casas, carros (…), tivemos tudo até ter chegado o futuro que fechou a loja de móveis, Banqueiros assassinos, Fuck the crise, escreveu alguém a spray vermelho nos estores corridos da loja» (p. 201).
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