Devastação é o segundo livro de contos de Eduardo Pitta publicado pela Dom Quixote. Ao contrário de Persona, publicado em 2019, e aqui apresentado, estas seis histórias, com nome de gente (Ema, João Pedro, Ofélia, Gilberta, Inês, Zé Maria), cerca de 10 páginas cada, não se entretecem nem formam um mosaico. São casos de vidas díspares, singulares, de 4 mulheres e 2 homens, que parecem nada ter em comum e sem que nenhuma das histórias pareça ser destacada, quase todas com final súbito e por vezes desconcertante. A história de Gilberta, talvez pela vida sofrida que já levou, é das poucas que acabam menos mal.

Histórias com nome de gente

Ema nasceu em 1940 e num incidente infeliz, num baile de sociedade, é vítima de preconceito, que lhe chega da própria mãe, que a deixou às escuras em relação ao seu corpo. Corta com a família e refaz a sua vida, mas 50 anos depois ainda espera vingar-se de quem a humilhou.

João Pedro, aos 12 anos, corre risco de vida, com o fito de evitar passar o Natal com o pai, em território selvagem, cuja descrição é invocativo de parques e coutadas africanas: «Mokaputa estava preparada para receber convidados. Em número de seis, os bungalows alinhavam‑se cerca de cem metros à esquerda do pavilhão principal, uma construção maciça dominada pelo imponente tecto de colmo.»

Será necessário engendrar um plano arriscado para não passar o Natal num calor infernal com um pai que quase não dá por ele. Não que João Pedro desgoste do pai, que até o deixa assistir aos seus treinos de esgrima: «Uma das coisas de que João Pedro gostava era de brincar sozinho com os floretes. Vestia a elegante jaqueta acolchoada que lhe ficava a dançar no corpo, punha a máscara metálica e zurzia o ar.» (p. 25)

Ofélia (história contada em tempos cronológicos distintos) está à beira dos 70. Tem uma filha, cujo pai desconhece, e o neto Pedro, o seu preferido, bate na mulher, devastado (e aqui a palavra devastação é aplicada com intenção, pois Pedro é quem gera devastação, mais do que uma vez) pelo desejo dos corpos de homens nos chuveiros do balneário do ginásio e pela latência de uma memória distante do abraço de Rafael, um pescador, rapaz de vinte e quatro anos, recém‑chegado dos matos da Guiné, por quem a avó claramente nutre uma afeição: «Não percebe o interesse da avó pelo homem. Embirrou com ele desde o dia em que foi levado num passeio de barco, obrigado a mergulhar na Lagoa de Óbidos e depois a manter‑se à tona da água, o braço forte do homem preso à sua cintura. A experiência despertou nele um atropelo de sentimentos. Já tem acordado com a sensação de estar enroscado naquele braço. Nessas alturas apetece‑lhe prolongar o anelo, mas salta da cama.» (pp. 38-39)

Gilberta tem 60 anos e não levou uma vida fácil. Preparava-se para celebrar 25 anos, quando nessa manhã de sábado do dia 7 de Setembro de 1974, assinado o Acordo de Lusaka, a sua vida muda drasticamente. Após a tentativa falhada de secessão branca, deixa uma vida desafogada em Lourenço Marques, parte rapidamente com o marido e os três filhos para Joanesburgo, onde espera em sobressalto o desenrolar dos acontecimentos, até que «desembarcaram na Portela ao princípio da manhã de 29 de Dezembro de 1977. Tinha vinte e oito anos e um diploma da Wits, em Accountancy, que o ISCAL validou a contragosto, praticamente em cima do Verão de 1979, no termo de uma batalha jurídica.» (p. 51) Ainda que munida, ao menos, desse diploma, a vida de Gilberta refaz-se do nada: «Em Portugal teve de adaptar‑se à nova realidade. Os primeiros tempos foram difíceis. Ele há brancos e brancos, reflectiu.» (p. 56)

Não hesita em expulsar o filho de casa por ser «paneleiro», apesar da bofetada do marido. Os outros dois filhos ignoram-na no momento da morte súbita do pai e não comparecem ao funeral, por questões de incompatibilidade de agenda.

Inês tem 43 anos e sobrevive à derrocada do imobiliário… Mas tinha 25 anos «no dia em que o pai mete a pistola na boca e dispara. A mioleira deu cabo do Noronha da Costa. Negócios fora‑da‑lei? O pai? A sociedade de corretagem insolvente? Então a casa já não era deles?» (p. 62)

Zé Maria tem 52 anos e no dia 13 de Março de 2020 recebe o diagnóstico de um aneurisma cerebral. Esse anúncio do fim dos seus dias coincide com a retenção da mulher nos E.U.A. para onde partiu de modo imprevisto e se vê impedida de regressar, conforme o mundo pára, os aeroportos fecham, a vida se suspende.

Entre a verdade e a mentira

Entre estas várias histórias de vida devastadas é possível encontrar afinidades, como a vivência de um antes e um depois do 25 de abril, ou de uma infância e adolescência passada na África colonial e uma idade adulta vivida na metrópole. Há personagens em fuga de África cujas vidas terão de ser refeitas, deixando tudo para trás assim que deflagra a Revolução e se anuncia o fim da guerra e da ocupação colonial. Com a sucessão das histórias percebe-se o desenrolar do fio do tempo até chegarmos aos nossos dias, como as intervenções do FMI em Portugal (na história de Inês) ou a pandemia (Zé Maria) como pano de fundo, e sob um olhar crítico, com um arranque simbólico numa sexta-feira 13, em Março. É ainda possível ler como a homossexualidade, transversal a um par destas histórias, é alvo de humilhação, expulsão ou recalcamento. O marido de Inês, por exemplo, quando sabe que o filho vende drogas, expressa alívio: «- Pelo menos não é maricas.» (p. 64) Aqueles que ficam de fora, como o filho de Gilberta, podem ser os únicos cujas vidas foram mais alegres, e daí ficarem de fora destes contos.

Para quem leu outras obras do autor, e conhece o seu percurso de vida, é difícil impedir uma sensação de reconhecimento, como se alguns dos factos narrados fossem autobiográficos ou pelo menos inspirados em histórias reais. Como se anuncia na epígrafe do romance, uma frase, de Hilary Mantel: «Some of these things are true and some of them lies. But they are all good stories.»

É possível reconhecer nestes contos aspectos familiares na escrita de Eduardo Pitta, como um meio anglo‑saxónico, culto, abastado, condicente com as elites moçambicanas, onde não faltam os tiques snob, os anglicismos (as papas de aveia chamam-se porridge e Joanesburgo é sempre Johannesburg), e um humor negro peculiar que por vezes assoma como no episódio, já citado, do suicídio do pai de Inês, cuja «mioleira deu cabo do Noronha da Costa».

Eduardo Pitta é poeta, escritor, crítico literário, ensaísta. Nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, a 9 de Agosto de 1949. Viveu em Moçambique até Novembro de 1975. Desde 2011 é crítico literário da revista Sábado. Mantém desde 2005 o blogue Da Literatura. Casou em 2010 com Jorge Neves, seu companheiro desde 1972. A 5.ª edição da iniciativa Alvalade Capital da Leitura, com curadoria de Carlos Vaz Marques, realizada entre 31 de maio e 5 de junho, centrou-se no autor, que tem uma forte ligação ao bairro de Alvalade.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.