Este livro publicado agora pela Porto Editora cuja capa pode apelar aos mais jovens traz temas bem prementes e actuais e transversais a todas as idades. Com distinções como a nomeação para a Carnegie Medal, seleccionado para o National Book Award, nomeado pelo Goodreads Choice Awards categorias de Autor Estreante e Ficção Jovem-Adulto) e premiado em 2016 como Melhor Estreia Jovem-adulto pelo Williams C. Morris Award, O coração de Simon contra o mundo não choca com o coração de ninguém, antes enternece e deleita qualquer leitor.
Foi lido de um fôlego durante uma tarde com algumas ocasionais risadas que não passaram despercebidas às pessoas em redor e a segunda metade do livro é tão enternecedora que deixa um sorriso na cara de qualquer leitor, por isso cuidado pois corre seriamente o risco de parecer inebriado ou apaixonado enquanto o lê. Não pretendo exagerar, e tomando nesta recensão um registo bastante pessoal para variar um pouco e sair de formalismos literários, devo dizer que o livro surpreendeu especialmente por isso, por esse condão mágico de me fazer recuar uns 20 anos e sentir-me a reviver a minha adolescência.
Tem havido grande burburinho em torno da série da Netflix, 13 reasons why, que narra o testemunho deixado por uma jovem de um liceu americano que se suicidou numa série de cassettes àqueles que terão contribuído para o seu sofrimento. Simon é um jovem do 11.º ano, tem quase 17 anos e vive algures na Georgia, numa cidade que não é inteiramente progressista mas que já revela outra abertura. E por um pequeno lapso, que é deixar a sua conta secreta de email aberta num computador da escola, Simon vê-se a ser chantageado por um colega até que, ironicamente por ser vítima do ciúme desse mesmo colega que está apaixonado por uma das melhores amigas de Simon, este acaba por revelar a toda a escola numa espécie de mural público da vergonha. O romance narra assim de forma actual uma história de descoberta da homossexualidade que é também a descoberta de um outro não muito diferente de nós e do amor numa tenra idade que deveria ser inocente e livre, alternando entre o registo na primeira pessoa do que se vai sucedendo na escola e em casa na vida de Simon e os emails trocados entre Simon e Blue, um amigo virtual que é alguém do seu ano de escola mas que evita deixar pistas quanto à sua verdadeira identidade. É nesta tensão, enquanto vítima de bullying, que Simon se vê denunciado e obrigado a revelar aos pais, amigos e colegas a sua homossexualidade.
Como escreve Nuno Pinto, Presidente da Direcção da ILGA Portugal, a história de Simon é a de muitos de nós: «a descoberta da homofobia, do preconceito, do insulto, do isolamento e da invisibilidade», mas O coração de Simon contra o mundo é também um livro que mostra que já estamos noutros tempos e que a homossexualidade já não significa a vergonha de outros tempos. Sem querer desvelar muito da narrativa, mas para mostrar como este livro escrito por uma psicóloga clínica (a mãe de Simon também é psicóloga) que acompanhou dezenas de jovens, inclusive em questões de género, pode ser útil e pertinente para tantos jovens, pais e professpres, deixo-vos com as palavras do próprio Simon quando ele se vê obrigado a “sair do armário” (e não nos esqueçamos que a própria adolescência era também ela conhecida como a idade do armário): «Tipo, acho que era disto que eu esperava. A minha mãe a perguntar-me o que estou a sentir, o meu pai a transformar tudo numa piada, a Alice a tornar tudo político e a Nora a ficar de boca fechada.» (p. 136).
Depois de rebentar a bomba já não há propriamente expulsões de casa ou pais a perguntarem-se “Oh Meu Deus onde é que eu errei?» mas Simon ainda assim se verá obrigado a enfrentar a humilhação de alguns colegas. Todavia, Simon mantém um humor delicioso (note-se que o título original do livro é Simon vs the Homo Sapiens agenda) enquanto narra o seu périplo e num registo cuidado e por vezes claramente cuidado mas sem cair na pieguice dá-nos conta do que significa ser homossexual nos tempos que correm e assumir o risco de se apaixonar por alguém que nem se conhece pessoalmente: «O que sinto por ele é como o batimento do coração: suave e persistente, subjacente a tudo.» (p. 207).
Este tipo de relação virtual, sabemos, acontece muito hoje, tal como noutras gerações relações e casamentos se construíam quase completamente através de correspondência. É ainda particularmente curioso como na escrita da obra a autora opta em relação a duas personagens por nunca dizer expressamente a sua cor de pele. Só mais tarde é que o leitor acaba por perceber em certo contexto de conversas, o que demonstra um cuidado em abolir qualquer ideia de identidade como etiqueta genérica. Pode haver platonismos ou pode haver concepções romanceadas de como será o outro, mas ainda há quem se veja obrigado a esconder atrás de identidades falsas, até conseguir encontrar alguém que lhe estenda a mão e o faça perceber que o nosso coração também pode bater com o mundo.
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