Depois da tetralogia encerrada em O Labirinto dos Espíritos, Carlos Ruiz Zafón tinha ainda a intenção de reunir num único volume contos dispersos por diversos formatos, como publicações periódicas ou separatas que acompanhavam as edições especiais dos seus romances. Com a doença do autor, a edição foi adiada, pelo que a sua publicação (pela Planeta Editora) após a morte do autor este ano, deve ser entendida como justa homenagem (e numa bela edição de capa dura com sobrecapa). O autor morreu aos 55 anos de cancro, na Califórnia.
Não só regressamos nestes contos à ambiência misteriosa própria das narrativas de Zafón (o vapor, a condizer com o nevoeiro, são presenças recorrentes), como reingressamos por várias portas de entradas no labirinto do Cemitério dos Livros Esquecidos, enquanto o autor distende um pouco mais o seu universo ficcional. Seja com a história (nunca acontecida?) de como o David Martín (O Jogo do Anjo) contou as suas primeiras histórias a uma menina chamada Blanca («Blanca e o Adeus»), com a lenda do que será provavelmente o plano arquitectónico desse grandioso labirinto que conhecemos primeiro em A Sombra do Vento, seja pelos vários Sempere, impressores antepassados de Daniel, que nos piores tempos da Inquisição salvaram livros da fogueira escondendo-os em caixões que enterraram (p. 128).
E o cenário sempre vivo que pulsa sob todas estas histórias, talvez verdadeiramente a principal personagem, é a cidade de Barcelona, no cuidado das descrições ora realistas ora fantasiadas. O livro é, aliás, enriquecido com uma série de fotografias, e não faltam cenários emblemáticos e personagens como Gaudí.
Fazendo nossas as palavras do autor, «se quisermos dar crédito à lenda e aceitar como boa a moeda da fantasia e da ilusão» (p. 129) no universo zafoniano tudo conflui, pelo que tão depressa lemos sobre homens cuja ambição os transforma em dragões devoradores de cidades («Rosa de Fogo»), como se reconstituem episódios menos conhecidos da vida de Miguel de Cervantes («O Príncipe do Parnaso»), quando quase vende a alma a Andreas Corelli (o mesmo de O Jogo do Anjo) para conseguir imortalizar o seu nome com a terceira e última parte (nunca escrita) de Dom Quixote.
O conto que encerra o presente volume é acertadamente simbólico, a marcar a despedida que este último livro do autor representa.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.