(Não, não é sobre livros… outra vez.)
Quando em Junho de 2019 fui de férias umas semanas a Portugal, isto é, Lisboa e maioritariamente Faro, de onde sou, conheci a Carla António (Para mim tu importas), pois treino sempre com o Francisco no seu ginásio – conheço-o há uns 20 anos, ainda ele era, para mim, um miúdo.
Depois de um período muito atribulado (depois do dia 14 de Março) e que não vale a pena agora explanar (além de que já tinha levado um grande abalo em Janeiro), percebi, ao chegar para aquilo que deveriam ser umas 3 semanas de algum sossego, que o que vivi voltava em força… cheguei a consultar um psiquiatra, pois aquilo que para mim já eram insónias habituais, pois ocasionalmente acordava pelas 4 h e já sabia que nem valia a pena tentar ficar na cama a dormir, tornou-se mais frequente. Ele decretou stress pós-traumático… A verdade é que na noite do ciclone Idai, apesar de perceber que o vento se intensificava, e ouvir os ruídos de algo a partir-se em cima do meu piso, como se todos os móveis e janelas andassem a ser empurrados dentro de casa pelo vento, ouvir as chapas de zinco que voavam do pavilhão desportivo do outro lado da rua e iam caindo por todo o lado na rua (ouve pessoas decepadas por chapas nessa noite), penduradas nos postes e fios eléctricos, os vidros das amuradas das varandas do prédio em frente que se estilhaçavam como copos, sentir o próprio prédio a abanar, ouvir uma árvore a ser rasgada da terra pela raiz, como se fosse papel, e atirada contra a parede do meu quarto, onde por acaso eu estava à janela a tentar ver como estava a rua apesar da escuridão, ao ponto de sentir a tremura da parede quando sofreu o embate e sentir água na cara, que de algum modo foi salpicada por entre as frestas da janela, que também escolheu aquela altura para se escancarar, tendo eu que a agarrar com as mãos e tentar prendê-la por dentro com um cordão dos sapatos (a única corda que eu tinha disponível)… bem, dizia eu, que apesar de tudo naquela noite eu mantinha-me estranhamente calmo. Não havia energia desde as 11h, a partir das 19h o vento começou a ficar mais forte, pelas 21h ficámos sem comunicações por completo (nem dados móveis nem serviço normal das operadoras), pelas 2h já eu estava morto de fome e sentei-me no corredor da casa, o único espaço onde não havia janelas perto, a comer alguma fruta, enquanto as correntes de ar se faziam sentir por todo o lado, e aquele barulho indescritível, que só posso comparar ao que se deve ouvir quando se mete a cabeça dentro de um aspirador, se intensificava mais e mais. Curiosamente pelas 2h30 devo ter apagado… quando o olho da tempestade passava pela Beira. Depois disso dizem que só ficou pior. Houve pessoas cujos tectos voaram mais ou menos por essa altura e que saíram de casa em pânico, meteram-se nos carros e conduziram até ao abrigo familiar mais próximo, passando por cima de tudo o que estivesse na frente (e na altura já as estradas estavam cheias de árvores caídas). Acordei pelas 6h. E foi quando percebi o silêncio… se bem que ainda se ouvia algum vento. Quando fui à janela do quarto vi o cenário, como a foto ilustra. E depois apercebi-me que havia vizinhos a olhar para dentro da garagem. Saí de casa, com a roupa que tinha no corpo, e dei a volta ao prédio. Os portões da garagem foram arrancados, a parede ruiu e por centímetros não chegou ao carro, que ficou intacto. Mas mesmo assim eu achei que tudo se ia resolver rapidamente… comi algo, sentei-me no sofá, respirei fundo e tentei agarrar-me ao meu livro sobre Comportamento… Não havia energia, não havia comunicações… mas haveria de ser uma questão de tempo até tudo voltar. Mas claro que não voltou. Por um mês. Tive a sorte de ter um amigo que manteve sempre a cabeça fria e sabia lidar com planos de contingência e emergência e foi com ele que passei os dias seguintes. E outro amigo. Os 3 numa casa, a viver de enlatados, a usar o gerador do vizinho do lado para manter a arca e o frigorífico ligados sempre que possível, com água a pingar por todos os lados, pois nos dias seguintes na maioria das casas os telhados de chapa voaram e os que eram de telha portuguesa aguentaram-se, mas furados por chapas ou árvores, e a água da chuva dos dias seguintes infiltrava-se por tudo o que era passagem, especialmente por onde passavam fios eléctricos, e ia pingando ao longo das lâmpadas e criando bolsas de ar grávidas de chuva na tinta dos tectos.
Tudo isto, bem como o cenário que presenciei de perto, enquanto toda a ajuda ia chegando e nós portugueses mobilizámo-nos muito rapidamente para ajudar aquela cidade, não foi muito fácil. Houve uma tarde em que no meu antigo gabinete entraram mais de 600 pessoas, a serem vacinadas por médicos, enfermeiros e farmacêuticos militares. Mesmo quando ouvia relatos de algumas pessoas, com mais 20 ou 30 anos do que eu, que já ali tinham vivido durante a guerra civil, pelo que para eles aquele cenário de destruição não era propriamente novidade.
Em suma, achei que era altura de fechar um ciclo e de me resolver. E se possível mudar, especialmente quando me apercebi que a recuperação poderia ser muito lenta e havia uma série de constrangimentos que me bloqueavam mais ou menos directamente. Foi nesse instante que entrei no gabinete da Carla e começou a nossa relação. Gostei dela instantaneamente, embora tenha pedido referências a outras pessoas, pois gosto de saber ao que vou. Não posso dizer, e ela sabe, que eu tenha sido muito fácil, até porque muitas vezes me baldava aos trabalhos de casa. O que posso dizer, para não me alongar muito mais, é que estabelecemos que um dos objectivos até ao final de 2019, ou pelo menos até aos meus 40 anos, era eu mudar de sítio, até porque precisava de uma situação definida. O resto, como por exemplo o estar sozinho há mais de 10 anos, podia esperar, ou aconteceria naturalmente. Havia uma meta muito desejada, mas entretanto percebi que não ia ser possível, pois já havia outra pessoa para o lugar. Em Julho voltei para a Beira e preparei-me para um novo semestre. O tempo continuou a passar. Concorri para um lugar em Lisboa. Fiz os exercícios que a Carla me ia indicando, no princípio com bastante convicção, depois mais por hábito. As imagens nas primeiras semanas eram, de facto, muito vívidas. Depois já pouco sentia… E a Carla perguntava-me, com o seu arquear de sobrancelha e a tentar não se desmanchar, se eu estava mesmo dedicado a mudar. Claro que sim, sempre… O pior é manter a disciplina e a fé… Mas a certa altura, quando me visualizava no futuro próximo, havia uma imagem recorrente… não sabia o nome do sítio, mas mesmo que quisesse pensar em algo diferente a imagem voltava… a de uma praia, mar em frente, uma casa com vista para o mar, uma pessoa a agarrar-me por trás, eu a trabalhar em algo que me realizava. Ter praia em frente não era na verdade muito diferente do que já acontecia, pois na Beira a casa era junto ao mar, bastava atravessar a estrada. Mas a imagem da praia era também a imagem de uma ilha, e sentia sempre que, fosse onde fosse, estava dentro de uma ilha. Os meses foram passando, por vezes com uma sensação de desamparo, outras vezes demasiado rápido, conforme me ia ocupando o melhor possível. E eu continuava a esperar conseguir voltar para casa… Até que, no final de novembro, recebo um telefonema.
– Para Lisboa não vai ser possível. Mas temos uma vaga que seria ideal para si…
E menos de um mês depois, quando já estou em Portugal, a 11 dias de terminar o ano, recebo um email de confirmação, com uma escolha… prefere isto ou quer aquilo, é no mesmo sítio mas as condições são um pouco diferentes…
E semanas depois, numa questão de dias, recebo confirmação que posso fechar tudo e meter-me numa viagem de 2 dias, com 3 voos, para, depois de alguns dias a correr com uma série de afazeres, voltar a embarcar para uma viagem de 3 dias, com outros 3 voos. Na quinta-feira, dia 6 de Fevereiro, aterro. Enquanto a paisagem vista do avião já me deixara arrebatado. Nos dias seguintes tudo flui: um apartamento que é perfeito e muito em conta; o contrato assinado (depois de uns 5 anos e pouco sem saber o que isso era); uma boa oportunidade de compra de carro; o conhecer alguém que parece ter derretido mais de uma década de isolamento e solidão, pois há agora algo aqui dentro a palpitar, como se dissesse: olha, afinal estou vivo. Por isso nestes 6 meses, posso dizer que valeu muito a pena ter conhecido alguém como a Carla que me ajudou a redescobrir… e ainda agora cheguei, mas acredito que Timor vai ser uma experiência fantástica…
Nota: para os mais desatentos, sim, Timor é uma ilha. E pronto, eu cheguei já no ano de 2020, mas a verdade é que ainda não completei os 40.
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