Publicado em Janeiro de 2020, pela Relógio d’Água (à semelhança da restante obra da autora), O Atelier de Noite reúne dois contos (ou breves novelas), a acrescentar ao universo muito próprio que tem vindo a construir ao longo das suas intrigantes narrativas.
«Talvez seja o que distingue as boas histórias: começam uma e outra vez, mesmo depois de já termos ido embora.» (p. 14)
O Atelier de Noite e Sete Rosas Vermelhas são as duas histórias que compõem o presente volume e que se interligam subtilmente. A de O Atelier de Noite é narrada por uma protagonista feminina um pouco diferente das vozes usuais, pois gradualmente perceberemos que nos é desvendado o que terá acontecido a Agatha durante os 11 dias em que terá permanecido desaparecida (situação factual). Espalha-se até o rumor de que teria sido assassinada, ou de que teria montado o cenário para que pensassem isso, e quando Agatha reaparece a melhor história a adoptar é a de que terá tido amnésia.
«Eu sonhava ser actriz, pianista profissional. Não escritora (…). E então surgiu a ideia de escrever um romance policial. E aquele horrível homenzinho entrou na minha vida.» (p. 25)
É mais ou menos neste passo da narrativa que o leitor confirma que Agatha é (pode ser?), afinal, a escritora de policiais Agatha Christie, até porque a narrativa por vezes oscila entre a primeira e a terceira pessoa. E da mesma forma que em tempos se tornou (dir-se-ia que involuntariamente) autora de Poirot, Agatha deseja agora recriar-se numa nova personagem: Teresa – ironicamente (ou não) o segundo nome da autora.
Sete Rosas Vermelhas, a segunda história, mais breve, traz ainda ecos da primeira narrativa. Uma jovem, que se casara com um professor mais velho, acalenta também, desde sempre, «o desejo de ir embora, de desaparecer» (p. 79) – e as duas histórias interligam-se de diversas outras formas, a começar pelas várias referências à autora tornada personagem da primeira história.
«Tinha vinte e poucos anos. Vivia num estúdio num sótão. Ia à faculdade de vez em quando. Embora tivesse desistido de ser dançarina, ainda praticava todos os dias.» (p. 70)
Quando começa a receber uns pacotes que a relembram da sua vida anterior, quando ainda pintava. Um livro, um CD, um quadro seu, fotos a preto-e-branco que revelam «um atelier de um pintor de noite» (p. 79), a jovem rende-se ao desejo e desaparece na noite. A vida convencional, sem cor, desta jovem mulher, uma escritora dispersa, que em tempos respondera pelo nome de Dylan, abre-se para um novo mundo: «sentia-se cada vez mais longe do mundo em que vivia, já nem vivia lá, era omo um outro estado de consciência» (p. 79).
Entre um conto e outro, há frases que parecem emitir um lampejo fugaz sobre a prosa da própria autora: «Era isso que queria fazer. Encontrar ligações. Escrever contos que se pareciam com ovos, fechados em si mesmo, que nem ela mesma compreendia.» (p. 90)
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