Almoço de Domingo, de José Luís Peixoto, autor publicado pela Quetzal, chegou às livrarias no início de Março, justamente para fazer justiça ao fio narrativo deste romance que se desenrola ao longo de três dias, 26, 27 e 28 de março de 2021, em que confluem ainda 90 anos de vida.
Com Autobiografia (2019), possivelmente uma das suas melhores obras e um dos mais inovadores romances da literatura contemporânea portuguesa, o autor construiu uma homenagem nada beatificada a Saramago, figura tutelar na sua escrita. Agora, em Almoço de Domingo, José Luís Peixoto volta a uma narrativa que, à primeira vista, se poderia confundir com uma biografia romanceada, revisitando a memória de Manuel Rui Azinhais Nabeiro, fundador da Delta, condecorado Comendador. O «menino Rui», ou o «senhor Rui», é o protagonista desta obra que retrata, em paralelo, a história do país de 1931 a 2021. A data de 28 de março de 2021, em que se celebra esse almoço de domingo, é, afinal, o dia em que se comemora os 90 anos do «senhor Rui». Mas desengane-se quem procurar ler este romance como se de uma biografia se tratasse, pois a sua proeza é justamente explorar o poder disperso e espiralar da memória, de como 90 anos de vida se podem concentrar em alguns momentos, alguns instantâneos que irrompem aqui e ali. Além disso, na contra-capa do livro não há qualquer esclarecimento ao leitor acerca de estarmos a ler sobre uma personalidade real, nem o apelido Nabeiro chega alguma vez a ser mencionado no próprio texto. Estamos assim no pleno domínio da recriação ficcionada de uma vida.
A narrativa constrói-se em dois planos, alternando entre o presente, ao longo dos dias 26, 27 e 28 de março de 2021, narrados na terceira pessoa, e o passado do «senhor Rui», com episódios marcantes da sua vida que irrompem aparentemente sem nexo ou ordem, narrados na primeira pessoa, num percurso que atravessa várias gerações. A vida do protagonista, que aos 9 anos percorria Campo Maior para distribuir os enchidos que a mãe vendia, passa pela Guerra Civil de Espanha, pelo período em que um chocolate tinha de ser contrabandeado e se tornava uma dádiva inestimável, pela fundação da Delta em 1961, pelo 25 de Abril em que os seus trabalhadores a tentativa de lhe tomarem a fábrica, por uma visita a Timor e a Angola com o fito de descobrir o café daí, e conhece figuras como Mário Soares. O «senhor Rui» torna-se o centro de uma constelação de vidas – a dos pais, do irmã e das irmãs, do tio Joaquim, da mulher Alice que conhece na escola primária e de quem se torna inseparável, do filho e das filhas, dos netos e bisnetos, dos seus funcionários (que agora se chamam colaboradores) e de todos aqueles que o procuram para lhe pedir um favor ou um trabalho –, até por fim se fundirem, num almoço de domingo, como se, não obstante a idade de quase um século, a sua vida e a da família se tornasse um só corpo: «Como um clarão, num momento, de uma vez, com súbito, profundo e absoluto sentido, o senhor Rui percebeu que tinha estado em todos aqueles pontos, tinha tido todas aquelas idades, tinha sido cada um deles. (…) Em cada um, existiam todos os outros.» (p. 239)
Esta exploração da ideia de identidade, já presente em Autobiografia, em torno das figuras de José L. Peixoto e José Saramago, ganha aqui novo matiz, pois no centro deste romance a imagem que perdura é a de uma mesa e a de uma família reunida em torno do patriarca num almoço de domingo, em jeito de celebração do amor e da consistência de uma vida que deixou obra mas deixa, sobretudo, continuidade de sangue.
«Quando acumulamos suficiente tempo, os domingos transformam-se num período da vida. Recordamos os domingos como uma unidade, anos inteiros só de domingos, estações inteiras compostas apenas por domingos» (p. 106)
Há uma passagem, logo nas primeiras páginas, em que o senhor e o menino se parecem sobrepor, como se o rememorar fosse verdadeiramente uma viagem no tempo, conduzindo à ocupação e redescoberta de um corpo que em tempos foi justamente seu: «Fixo-me nas minhas mãos de rapaz de nove anos, o tamanho e a forma dos dedos, as unhas, a pele da palma das mãos, os pulsos. Reparo nos meus braços, na proporção do meu corpo em relação ao que me rodeia, esta cozinha, a cozinha dos meus nove anos, reparo neste tempo, serão da minha infância» (p. 24).
Acerca do poder da memória, na forma como resgata momentos de vida que irrompem pelo presente, destaque-se um momento-chave em que o protagonista parece descobrir a sua própria madalena, ao jeito de Proust, que, no seu caso, serão as sopas de leite, tipicamente alentejanas: «Rui, também menino por um momento, teve a distinta vontade de sopas de leite, procurou uma tigela e uma colher, leite num pequeno jarro. Lembrou-se de ter um cubo de pão na boca, a sua textura, a apertá-lo com a língua de encontro ao céu da boca, o leite morno a jorrar do seu interior.» (p. 124)
Esta passagem retrata igualmente bem outra das características marcantes da obra: a forma como a memória, e a vida, assenta sobretudo em sensações. A sinestesia do romance é forte, principalmente no táctil e no gustativo, como que a dar conta de que o melhor da vida é feito de pequenos momentos em que a atenção expande a consciência: «Era um veio de acidez, podia avançar por ele, isolá-lo do resto do sabor. Nesse exercício, conseguia identificar um tipo de frescura que sugeria a imagem de maçãs verdes, como quando descascava uma maçã noutro tempo e a lâmina da faca tinha riscos húmidos e a carne da maçã sangrava pequenas gotas de sumo ácido. Mas, claro, reconhecia também o doce, a sua preferência. Em alguma idade teria aprendido esse gosto, o doce confortava-o.» (p. 33).
José Luís Peixoto nasceu em Galveias, em 1974. Em 2001, foi atribuído o Prémio Literário José Saramago ao romance Nenhum Olhar. As suas obras foram finalistas de prémios internacionais e estão traduzidas em mais de trinta idiomas.
Excelente texto. Excelentíssimo. Parabéns.
Almerinda
Que bom que gostou! obrigado.