O segundo romance de James Baldwin, O Quarto de Giovanni, publicado pela Alfaguara, é talvez o mais peculiar, e também o que mais atrito provocou, com a recusa do seu editor em publicá-lo, sugerindo-lhe antes que incendiasse o manuscrito. Contudo viria a tornar-se obra de culto.
James Baldwin, como se sabe (e podem sempre rever o documentário I Am Not Your Negro), nasceu em 1924 em Nova Iorque, cresceu no bairro de Harlem, e viajou depois para Paris em busca de liberdade para se encontrar como homem negro e homossexual (curiosamente surge inclusive no romance uma passagem em que essa expressão é discutida – p. 32).
A homossexualidade irrompe como tema central deste segundo romance, contudo qualquer ilusão de confessionalidade (acentuada pela epígrafe do livro «Eu sou o homem, eu sofri, eu estava lá.», de Walt Whitman) é estilhaçada logo no início, quando a personagem principal se observa narcisicamente:
«Olho para o meu reflexo no brilho cada vez mais pálido da janela. O meu reflexo é alto, talvez um pouco como uma seta, o meu cabelo louro brilha. O meu rosto é como um rosto que vocês já viram muitas vezes. Os meus antepassados conquistaram um continente, atravessando planícies repletas de morte até chegarem a um oceano virado de costas para a Europa e de frente para um passado mais sombrio.» (p. 13)
David, o narrador, alto e possante como um atleta, tem corpo de deus grego e nome de anjo, a condizer com a sua palidez e o seu fulgor dourado. Este jovem nova-iorquino, cerca de vinte e sete anos, vive sem compromisso nem fito a folie e a joie de vivre parisiense, enquanto a namorada Hella se passeia por Espanha. Até que conhece outro expatriado em Paris, o belo, sedutor e impertinente Giovanni, um italiano que lhe revelará a natureza secreta dos seus desejos mais obscuros e reprimidos. Se este quarto de criada, «claustrofóbico», é refúgio próprio de amantes, condizente com a sua baixa condição social e com a clandestinidade da sua intensa relação (não isenta de vergonha), é ainda metáfora de dois jovens que estão no limiar da vida adulta, sem casa ou família. Mas esse «miserável armário que faz de quarto», «minúsculo e nojento» (p. 161), que chega a surgir animizado como se se tratasse de um monstro de pesadelo, pode ser também um «caminho de regresso», «um quarto familiar na escuridão em que eu tacteava para encontrar a luz.» (p. 139)
Ao publicar esta obra em 1956, James Baldwin quebra portanto mais do que um tabu, pois em vez de escrever sobre a homossexualidade na pele de um negro, afirma-se como um autor negro a escrever sobre o amor entre dois homens brancos. Um romance que tem tanto de trágico, no que se refere ao desfecho de Giovanni, como de inspirador, pois é quando Hella deixa David que ele parece assentar todas as suas ideias por escrito e preparar-se para recomeçar. Como se não houvesse mais tempo ou mais vidas a desperdiçar.
«Lembro-me de ter a sensação de que a vida neste quarto decorria debaixo das águas do mar. O tempo passava indiferentemente sobre nós; horas e dias não tinham qualquer significado. No início, a nossa vida a dois comportava uma alegria e um maravilhamento que renasciam a cada dia que passava. Sob a alegria, é claro, havia angústia e, sob o maravilhamento, medo, mas estes não nos atormentaram no início, não antes de o nosso glorioso início começar a azedar.» (p. 89)
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