É o primeiro livro que leio deste senhor mas não será certamente o último. Numa escrita fluída, mas complexa, que nos leva em parágrafos que se estendem por páginas, em que a corrente de consciência de Franz Ritter alterna entre o presente, e a solidão e melancolia do seu apartamento, e o passado, mais concretamente a memória de Sarah, o autor revela um domínio exímio do Oriente, tanto do histórico e romanceado como do actual e brutal, da música e da literatura. Mathis Enard viveu aliás no Oriente, estudou persa e árabe, e leu trabalhos de orientalistas, eruditos, literários e musicólogos. Não é uma literatura ligeira ou passível de ser feita num ápice mas é claramente viciante, especialmente pelo tom melífluo, por vezes com alguma autocomiseração, deste intelectual menino da mamã, um «monstro pálido e míope», que se perde quase doentiamente na memória de uma Sarah inalcançável – «regressemos a Sarah e à memória, já que tão inevitáveis são uma como a outra» – enquanto encara também as noites insones – os capítulos, à excepção do primeiro, são designados com horas como «23h10» – e uma certa angústia face a uma doença recentemente diagnosticada. Acho particularmente relevante a forma como este homem se sente fascinado por uma mulher, como muitos outros homens em muitos outros romances, mas aqui, apesar do inegável desejo, é quase inédito, diria eu, a admiração de Franz Ritter pela intelectualidade de Sarah, pela sua paixão pela cultura e pelo seu saber inesgotável.
Terminada a leitura de Bússola só me ocorre a designação de romance-ensaio, depois das densas 400 páginas (aliás, 399 se queremos ser exactos) em que o autor discorre sobre a paixão do Ocidente pelo Oriente, aborda a presença do orientalismo em áreas como a literatura e a música, reflecte sobre a noção da saudade portuguesa como uma doença afim à melancolia, cita e refere várias vezes Fernando Pessoa – outro apaixonado pelo Oriente (Opiário) -, lembra Wagner, Herman Hesse (lembremo-nos de Siddhartha), descreve cidades hoje ruídas como Alepo ou Palmira, e, em suma, procura apelar ao leitor e ao cidadão europeu que o Oriente nunca esteve muito longe do Ocidente, que os grandes compositores e escritores beberam da influência da cultura oriental, e que a Europa só ganha nesse sincretismo cultural em vez de procurar fechar as suas portas ao Oriente (e à recente vaga de refugiados sírios), até porque aliás onde ficam verdadeiramente as portas que delimitam o límite entre a Europa e o Oriente? Em Viena, onde o protagonista vive? Será que afinal o centro da Europa é apenas a sua periferia? E quantas vezes é que o Oriente não passa afinal da nossa versão ocidentalizada do mesmo, com tapetes voadores e princesas dignas dos filmes da Disney? Versão romanceada essa que chegou a ser apropriada e aproveitada como propaganda pelo próprio Oriente…
Bússola ecoa ainda a literatura de viagens (e relembre-se a moda orientalista que assolou a literatura de viagens portuguesa) mas mais ao estilo de Xavier de Maistre e a sua «Viagem à volta do meu quarto», título que se torna presente quase desde o início (e é referido quase no fim da obra), enquanto acompanhamos a insónia de Franz, e a sua subsequente rememoração do seu passado com Sarah, que apenas parece terminar na última linha do romance que termina aliás de forma abrupta, em aberto, como se o despontar da aurora significasse finalmente o sono tão adiado de Franz.
Contras: não sei se é defeito da revisão ou se são simplesmente gralhas, mas proliferam vários pequenos erros tipográficos, o que é uma pena, considerando as edições normalmente tão cuidadas da Dom Quixote que, esperamos, sejam revistos a tempo da segunda edição.
Deixo ainda um link onde se pode aceder às músicas que povoam a obra e nos servem de banda sonora
http://www.deezer.com/playlist/1523408091
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