Há 90 anos, na manhã deste exacto dia 8 de dezembro, no ano de 1930, Florbela Espanca suicidou-se. Era o dia do seu aniversário e foi a data do seu primeiro casamento. Faria 36 anos.
Ana Cristina Silva, no romance biográfico Bela, publicado pela Bertrand Editora, reconstitui a vida da poeta (Florbela não gostaria que lhe chamemos poetisa) que não viveu para saber que o seu nome entraria no cânone literário português e que ainda hoje se lêem os seus poemas. A primeira edição deste romance tem quinze anos e foi profundamente reescrita. Bela não é, contudo, a elegia que se esperaria.
A narrativa é construída numa dicotomia irreconciliável, entre os interlúdios que dão conta das memórias de Bela narradas além-túmulo, e os vários capítulos, sem nome, mas sempre com indicação de local e data, em que um narrador omnisciente dá conta das emoções e sentimentos das várias personagens cujas vidas foram tocadas por Bela, a quem raramente perspectivam a uma luz favorecedora. Cabe ao leitor discernir e escolher o retrato que deseja compor de Florbela, força da natureza capaz de provocar grandes ódios e intensas paixões. Na primeira parte, conforme se narra os momentos precedentes do seu suicídio, o tom é mais soturno, quase melodramático, como convém ao esquisso de uma vida incompreendida e apaixonada ao ponto de perseguir paixões, mesmo quando sabe que são quimeras – Bela casou-se três vezes, foi sempre infeliz com os seus maridos, e dir-nos-á que apenas conheceu verdadeiramente o amor na figura de Apeles, irmão que, quase certamente, também se suicidou. É a partir do terceiro capítulo que Ana Cristina Silva se expande na sua pujança narrativa, onde a partir de fragmentos e de meias-verdades constrói uma história arrebatadora: a de um triângulo amoroso entre João Espanca que além de trair a mulher, Mariana, com a sua amante Antónia, tem a desfaçatez de lhe pedir que crie a sua filha. Note-se que a história dos amores e desamores de Espanca-Pai dura da página 25 à 88 (quando ele literalmente sai e bate com a porta), correspondendo a quase metade do romance.
A história da infância sofrida de Bela, dos maus tratos de uma mãe (que nunca compreende se é madrinha ou madrasta) à inconstância amorosa do pai que nunca a legitimou, pode aliás ser a chave da compreensão para o comportamento de Bela. Muito pouco convencional, ousada ao ponto de sair à rua vestida de homem e não só se divorcia duas vezes, como casa ainda uma terceira vez. Faz dos seus excessos (e os da sua poesia) uma revolta contra a rejeição (p. 74), sem se deixar regrar pelos moralismos próprios de um Portugal na viragem do século XX, num tempo em que a poesia escrita por mulheres era uma ocupação ao nível dos bordados. Um dos seus maridos, médico, recomenda-lhe, aliás, «descansar a cabeça das neuroses» e «não escrever tanto, de modo a não ser vítima de perturbações nervosas» (p. 156).
«Onde é que alguma vez se vira uma mulher ir estudar para a universidade? Ainda por cima, Letras! Era suposto, acrescentou, que a poesia fosse um passatempo tão assisado como bordar ou tocar piano e não dar origem a disparates que comportavam despesas. Era obrigação de um marido enfiar algum juízo na cabecinha de vento de sua mulher em vez de alimentar os seus caprichos. (p. 115)
Ana Cristina Silva é professora no Instituto Superior de Psicologia Aplicada na área de Aquisições Precoces da Linguagem Escrita, Ortografia e Produção Textual. Autora de 15 romances e de um livro de contos, venceu o Prémio Fernando Namora em 2017 com o romance A Noite Não é Eterna. Recebeu o prémio Urbano Tavares Rodrigues pelo romance O Rei do Monte Brasil.
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