Ao largo da vida – novelas e esboços é o primeiro livro de contos de Rainer Maria Rilke, publicado pela Ítaca. O livro deste autor nascido em Praga é constituído por 11 contos: uns anunciam a morte, outros a doença, enquanto que noutros ainda fica a ideia de um desejo frustrado («A fuga», «A voz»), mas em todos perpassa uma inquietante melancolia, condizente com a vida depressiva de um autor que sofreu ele próprio a tragédia.
No conto que abre o livro, «Festa em Família», assistimos a uma típica reunião familiar se não fosse, e note-se a ironia da designação de festa, o facto de estarem reunidos para celebrar o oitavo aniversário da morte de Anton. O trágico parece no entanto esconder-se sob a circunstancialidade das conveniências e dos ritos sociais, mas subjaz à descrição das cenas uma fina ironia que acusa um tom desencantado e mordaz: «Colocava as palavras como um biombo diante do prato demasiado cheio, e a sua fantasia rivalizava com o estômago na missão de fazer a digestão.» (pág. 11). Ou como na passagem em que o irmão do defunto se prepara para recitar o discurso que repete ano após ano sem nada mudar, a não ser o número de anos que se passaram, e bate com a faca na borda do copo: «Esta pequena causa teve uma série de efeitos poderosos: todas as armas interromperam a sua pressa com maior ou menor alegria, e os guardanapos surgiram como bandeiras brancas parlamentares de diferentes colos e adejaram em sinal de tréguas e paz.» (pág. 11). O que também não parece mudar, à semelhança do discurso que se profere todos os anos, é o mobiliário da casa dos von Wick a partir do qual se pode aliás traçar a história da família, ocorrendo mesmo a dada altura uma espécie de visita guiada para relembrar quem morreu onde: «era uma grande vergonha ser cadeira em casa dos von Wick onde nunca ninguém tivesse morrido» (pág. 13). No final, e por um pequeno lapso da parte de um velho criado, instaura-se um mau presságio que parece anunciar a próxima morte.
E com a velhice desse criado entramos nos próximos contos, pois a velhice – que é em si ela própria descrita como uma doença – é o traço comum a alguns dos próximos contos: «As tremuras da terrina tinham qualquer coisa de frágil, lisonjeiro, quando a aproximou dos cotovelos aguçados da criança pálida. A maioria dos olhares seguia com cuidadoso desvelo os movimentos do velho, pois ele era um raro monumento e, por assim dizer, a encarnação dos restos terrenos de todos os von Wick já falecidos.» (pág. 15).
A velhice surge descrita como uma não-vida mas tem também, para aqueles que a ela assistem ao largo, a vantagem de servir como garantia de que nada muda nos dias: «cada bom cidadão que passasse diante das janelas das duas velhas senhoras ter-se-ia surpreendido muito menos se a velha igreja, o monumento da cidadezinha, tivesse perdido de repente uma das suas torres do que se ao lado do cabelo ralo e branco de Rosinchen não surgisse a cabeça severa, tersa e estranhamente negra de Klothilde» (pág. 21). Neste segundo conto, «O segredo», Rosine parece sobreviver à sua melancolia apenas pela sua expectativa de desvendar o segredo da amiga com quem acaba por viver durante quase toda a vida sem que tivessem sequer entre si uma grande afinidade – note-se o contraste entre a cabeça branca e a cabeça negra da outra. Mas é também a sua curiosidade que a vai corroendo como um cancro.
Em «O menino Jesus», datado de 1893, sente-se uma ressonância do conto «A menina dos fósforos» que é depois confirmada: «E ela era bonita, a mãe, bonita como a fada nos contos de Andresen» (pág. 84). Em «Todas numa só», temos um rapaz que ficou paraplégico, nunca se sabe como, que talha esculturas em madeira da Virgem Maria até que pelos olhos de uma criança percebe afinal quem estava verdadeiramente a representar naquelas figuras num gesto inconsciente em que carpia a sua mágoa e solidão – «Ela é como a saudade». E o rapaz parece conferir-lhes tal importância e amor com as «suas mãos brancas de doente, mãos de rapariga» que estas quase parecem vivas, assistindo à sua infelicidade: «ficavam ao lado umas das outras em espera ociosa no sótão e não conseguiam acreditar que, mesmo unindo-se intimamente, poderiam fazer um milagre» (pág. 98).
No conto que encerra o livro, e penso que não por acaso, «Unidos» datado de 1897, assiste-se ao culminar de um confronto que de alguma forma atravessa quase todos os contos do livro, e que é uma religiosidade desencantada (sem querer entrar em autobiografismos, o autor perdeu uma filha com uma semana de vida) face à crença cega na religião, personificados numa luta entre uma mãe fervorosa e um filho doente que regressa a casa, o que traz grande alegria à mãe, apesar de ele nos dar a entender que apenas voltou para morrer: «eu sou um fruto precocemente apodrecido e cheio de vermes» (pág. 112). Mas no final fica uma nota de esperança, como o título do livro indiciava.
Proliferam os símbolos ligados à morte, como o jacinto, o Outono, o crepúsculo, a palidez das personagens, os dias claros e pálidos, o último bater de asas de uma borboleta, nestes vários contos finamente tecidos em prosa cuidada mas límpida onde as personagens estão sempre ao largo da vida. Mas é também dessa margem que podem olhar com distanciamento e ver com mais clareza aquilo que lhe confere sentido.
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