Terminado outro romance de Agustina Bessa-Luís, A corte do Norte, fica sempre a sensação de se ter lido uma obra contada em espiral, pois não há propriamente uma intriga nem mesmo uma linearidade narrativa, mas sim uma série de analepses e prolepses, em torno de uma figura central, que é Rosalina, a Baronesa de Madalena do Mar, ou mais exactamente em torno do enigma do que terá acontecido a Rosalina que um certo dia desapareceu.
A narrativa situa-se na ilha da Madeira, mais precisamente, na povoação de Corte do Norte, Ponta Delgada, e centra-se, inicialmente, na figura de Rosalina que depois se cruza com Sissi, a imperatriz Elisabeth de Áustria (Inverno de 1860-61) que se encontrava na ilha em convalescença, cuja visão aliás parece perturbar e transformar Rosalina. Mas como se afirma no início este é também um romance que se centra não em Rosalina mas sim na ilha, na insularidade, na saudade, e em particular na possibilidade de se poder escrever a História.
Ao longo de cinco gerações o enigma de Rosalina persegue alguns dos seus descendentes que, por muito que repensem e procurem remexer no passado, isso só servirá para criar mais e mais conjunturas acerca do que possa ter realmente acontecido. Deste modo, A corte do Norte inscreve-se numa linha pós-modernista do romance histórico, em que a História nunca aparece como passível de ser fixada enquanto lei ou facto, mas sim como uma verdade temporariamente válida e sempre em revisão. Por outro lado, o enigma de Rosalina é de tal forma premente que as gerações que a sucedem parecem não poder resolver-se, isto é, a identidade de cada um só se pode cumprir quando o mistério que os precede puder ser resolvido. Inclusivamente é curioso como à ambiguidade ou incerteza do passado, se junta a questão da duplicidade ou do duplo, como no facto de Rosalina se confundir com a actriz Emília de Sousa, além de ser recorrentemente apelidada de Boal (a propósito de uma casta de vinho), mas mais especialmente no facto de os próprios descendentes da Baronesa, como por exemplo Rosamund, conforme são também possuídos por essa vontade de decifrar o enigma dessa mulher cujo corpo nunca foi encontrado, parecerem subitamente copiá-la não só no físico, o que sempre se pode explicar pela intemporalidade genética, mas no próprio comportamento.
Este é um romance inacabado, característica aliás da escrita agustiniana, pois cabe ao leitor decifrar o enigma e cifrar as suas próprias interpretações, todas elas válidas (à semelhança de Rosalina que a cada nova investigação sofre uma morte diferente), que trata bastante da questão da Madeira (local que me é particularmente querido pois faz parte dos meus costados), essa pequena nação à parte, com os seus modos próprios, a sua história, os seus ditos e palavras, mas também, apesar da relativa ausência de linearidade cronológica, da História do país ao longo de século e meio, onde a autora/narradora (é difícil distinguir neste caso, onde aliás, o próprio “eu” surge claramente assumido no final do romance) tece as suas considerações sobre o devir histórico, filosófico, social, político, económico… Em suma, Agustina é um mundo à parte, no qual entro sempre a medo, mas saio sempre refeito. Afinal estas cerca de 250 páginas levaram-me quase uma semana, até porque temos de seguir cuidadosamente o fio da narrativa mas também deliciar-nos com os aforismos com que Agustina constantemente presenteia o leitor. Falta-me agora ver o filme de João Botelho. Em conclusão, dizia, «O epílogo desta história não se há-de escrever nunca.».
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