A outra metade, de Brit Bennett, publicado pela Alfaguara, com tradução de Tânia Ganho, é uma saga familiar, repartida ao longo de quatro décadas e vários estados norte-americanos.

As gémeas Stella e Desiree Vignes, «dois corpos vertidos num só, cada qual puxando para seu lado» (p. 46), idênticas de feições mas distintas em temperamento, desaparecem da vila de Mallard aos 16 anos. Apesar da «pele clara, cor de areia húmida» (p. 11), estas duas jovens, ainda a processar a morte violenta do pai, decidem partir para Nova Orleães, na esperança de fugirem ao sufoco daquele vilarejo, de uma vida como empregada doméstica à semelhança da mãe, em casarões de brancos ricos, e a uma vida sem futuro. Mas a fuga do lar materno acaba por resultar no afastamento definitivo das duas gémeas, até então resignadas a ser a «metade de um par incompleto» (p. 17), quando Stella um dia simplesmente desaparece, ao aperceber-se que na verdade não lhe é muito difícil fazer-se passar por branca, ainda que tal implique negar o seu passado e cortar com a sua outra metade.

A narrativa inicia justamente quando, catorze anos mais tarde, Desiree foge novamente de casa, a um marido violento, e regressa à casa materna, arrastando pelas ruas poeirentas da terra uma filha de pele «negra como o alcatrão» (p. 11), que atrai todos os olhares e desperta o racismo latente daquela pequena comunidade.

De Mallard a Washington, passando por várias outras cidades, entre 1954 e 1986, tocando subtilmente nos motins dos dias posteriores ao assassinato de Martin Luther King, desenrola-se a história destas duas gémeas e das suas filhas, com saltos temporais de décadas. Uma narrativa que lida com a identidade racial, mas também com a identidade binária; com as identidades outras que por vezes nos vemos obrigados a adoptar, como forma de refazer a nossa vida; com a identidade como algo que se constrói ou um eu que se encontra algures pelo caminho; com o peso das escolhas que muitas vezes tomamos impulsivamente e nos arrastam em direcções tão imprevistas quanto dolorosas, ainda que repletas de novas oportunidades. Contudo, por muitas voltas que a vida dê, ou por muitos nós que possamos dar à vida, esta encontra sempre forma de nos confrontar com cada escolha. Por vezes, a vida destas duas gémeas parece, na verdade, a história de uma só mulher, que a certa altura se dividiu em duas e viveu vidas alternativas, pois «ter uma gémea era como viver com outra versão de si própria» (p. 256).

Brit Bennett formou-se na Universidade de Stanford e obteve um mestrado em ficção na Universidade do Michigan, onde recebeu o Hopwood Award e o Hurston/Wright Award. Escreve para publicações como The New Yorker, The New York Times Magazine e The Paris Review. A sua estreia no romance, com The Mothers, foi um sucesso, finalista dos prémios Goncourt e Médicis, em França. A outra metade estabeleceu firmemente o seu nome entre as grandes novas vozes da literatura americana, com nomeações para vários prémios: Finalista do Women’s Prize for Fiction e Nomeado para o National Book Award. O romance será adaptado a série de televisão.

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.