Todos Contam, de Kristin Roskifte, é um álbum infanto-juvenil original e divertidamente único, agora publicado pela editora Nuvem de Letras, integrando a coleção Lilliput. A premiada autora norueguesa prossegue a sua contagem universalista e filosófica, iniciada em Todos Viajam. Premiado e aclamado pela crítica internacional, Todos Viajam foi reconhecido também a nível nacional, passando a integrar o Plano Nacional de Leitura e distinguido com a Menção Honrosa António Torrado na segunda edição do Selo Caminhos de Leitura. Ambas as obras foram traduzidas diretamente do norueguês pelo escritor João Reis. Ver artigo
“Porque o homem se agarra às suas coisas, agarra-se a si mesmo e às suas coisas até para lá da morte, e receia perder a vida, a mais real de todas as coisas reais, a mais frágil de todas as coisas frágeis, a mais eterna de todas as coisas eternas (…) Teme a solidão que é a própria condição da sua existência, (…) e teme que Deus se esqueça dele.” (p. 24)
A Estrela da Manhã, de Karl Ove Knausgård, com tradução de João Reis, publicado pela Relógio d’Água, é um volume portentoso de 680 páginas. Originalmente publicado em 2020, está anunciado como o primeiro de um conjunto de 5 livros – o que condiz com o método do autor, que normalmente reparte as suas obras em torno de vários volumes, ainda que até agora se tenha centrado numa escrita mais autobiográfica. Ver artigo
Se com Pétalas ou Ossos, publicado recentemente pela Minotauro, é o quinto romance de João Reis. Pode ler-se na sinopse: «Um jovem autor português instala-se numa residência para escritores em Seul para escrever o seu próximo romance. Em vez disso, deambula pela cidade com a namorada, possivelmente grávida, e entrega-se a todo o tipo de fait divers mais ou menos absurdos, não obstante a pressão dos editores.» Ver artigo
Cláudia Andrade é a mais recente aposta da Elsinore, editora que discretamente tem vindo a apostar em novas vozes literárias, como João Reis ou Raquel Gaspar Silva, mas sobretudo em autores que além de inéditos trazem uma nova voz ao panorama literário português, uma assinatura de estilo na sua prosa.
Depois do furor causado pelo seu livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica, finalista do Prémio Autores 2020 (Melhor Livro de Ficção Narrativa) da Sociedade Portuguesa de Autores, Cláudia Andrade presenteia-nos agora com o seu primeiro romance, Caronte à Espera, que reafirma a força da sua voz na literatura portuguesa.
Depois do furor causado pelo seu livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica, finalista do Prémio Autores 2020 (Melhor Livro de Ficção Narrativa) da Sociedade Portuguesa de Autores, Cláudia Andrade presenteia-nos agora com o seu primeiro romance, Caronte à Espera, que reafirma a força da sua voz na literatura portuguesa.
Caronte à Espera é uma narrativa breve, que não ultrapassa as 130 páginas, mas capaz de deixar o leitor tão agarrado quanto desconcertado, possivelmente até capaz de voltar ao início do livro para o reler. A prosa é burilada, em frases que se distendem e emaranham, um pouco como as acções das próprias personagens que são tão complexas e enigmáticas quanto desamparadas. Há aliás uma passagem do livro que parece relevar isto mesmo: «Não vejo motivo para contar a vida com a pressa insensível com que somos obrigados a vivê-la» (p. 66).
(…)Cláudia Andrade é a mais recente aposta da Elsinore, editora que discretamente tem vindo a apostar em novas vozes literárias, como João Reis ou Raquel Gaspar Silva, mas sobretudo em autores que além de inéditos trazem uma nova voz ao panorama literário português, uma assinatura de estilo na sua prosa.
Depois do furor causado pelo seu livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica, finalista do Prémio Autores 2020 (Melhor Livro de Ficção Narrativa) da Sociedade Portuguesa de Autores, Cláudia Andrade presenteia-nos agora com o seu primeiro romance, Caronte à Espera, que reafirma a força da sua voz na literatura portuguesa.
Caronte à Espera é uma narrativa breve, que não ultrapassa as 130 páginas, mas capaz de deixar o leitor tão agarrado quanto desconcertado, possivelmente até capaz de voltar ao início do livro para o reler. A prosa é burilada, em frases que se distendem e emaranham, um pouco como as acções das próprias personagens que são tão complexas e enigmáticas quanto desamparadas. Há aliás uma passagem do livro que parece relevar isto mesmo: «Não vejo motivo para contar a vida com a pressa insensível com que somos obrigados a vivê-la» (p. 66).
Artur, o protagonista, reformou-se há um ano e vive agora entediado e desinteressado da vida, como se percebe logo no início do romance quando a mulher lhe pousa em cima o álbum de fotos do seu casamento: «Artur carecia tanto da força para suportar como para repelir a eterna repetição daquele ritual» (p. 7) Quando ao oitavo dia da sua reforma, e sétimo dia de treino desde que se determinou a ficar em boa forma física, Artur se vê conduzido numa ambulância por se lhe ter prendido uma virilha, fica dado o mote para a narrativa pícara da vida deste pobre coitado que na própria semana em que decide suicidar-se rapidamente vê gorados os seus recentes planos de morte ao descobrir numa foto do álbum de casamento, visto e revisto, um rosto que se distingue entre os familiares pela «não-familiaridade dos traços, o ar de eslava anemia, a aura de poeta no desemprego» (p. 10). É nesse instante-revelação que Artur é acometido por uma visão que lhe dá novo ímpeto, levando-o a dirigir as suas intenções numa nova direcção ao longo de toda a narrativa, da mesma forma que aí inicia esta narrativa que é afinal o conto dessa viagem, que implicará sair de casa e deixar a mulher. Viagem iniciática, rito de passagem, que inicia com essa demanda quixotesca de Artur – um pouco ao jeito dos Cavaleiros arturianos da Távola Redonda –, mas sempre sujeita aos revezes da ironia do destino, como quando finalmente se decide a apanhar o metro, decisão laboriosamente descrita que desemboca no risível, e depois se dá a revelação, ao sair para a plataforma, de que Artur afinal viajara no sentido errado.
A indefinição e indecisão de Artur estende-se inclusivamente às dúvidas que este nosso antiherói, e o leitor com ele, tem sobre a sua sexualidade. Mas a saga atribulada de Artur pode ser lida sobretudo como uma alegoria da condição humana, em que predominam símbolos quer literários quer míticos. Além do nome Artur, temos Beatriz, a sua mulher, cujo nome é quase indissociável daquela outra mulher-anjo que conduziu Dante ao Inferno e ao Paraíso, mas que para este Artur representa apenas o tédio e fastio da vida doméstica de casado. Existe depois um homem que parece tornar-se o amante de Artur, mas que pode ser tão somente o lado sombrio da sua consciência. Há duelos entre o bem e o mal, representados por anjos. E há as inevitáveis referências literárias, como é o caso de Artur ler Morte em Veneza (e tal como a personagem central do livro vive obcecado na busca de um homem que é também um ideal de beleza) enquanto o seu novo amigo, Ivan, lê Margarita e o Mestre (que narra a visita do Diabo à cidade de Moscovo). Conforme tudo isto se desenrola, Caronte é deixado numa espera, como o próprio título indica, enquanto Artur tão depressa se decide a morrer como depois esbraceja para se agarrar à vida, sendo, por isso, bom para “chamar a morte”, dada a sua lentidão e indefinição. Mas esse ajuste de contas com o passado, desencadeado por um belo desconhecido numa foto, torna-se afinal um ajuste de contas com a vida.
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Autora dos livros de contos Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe era habitual de Vitória F., entretanto abandonado), e Quartos de Final e Outras Histórias, finalista do Prémio Autores SPA 2020 – Melhor Livro de Ficção Narrativa. A autora considera-se sobretudo contista, embora esteja já a trabalhar num segundo romance, e antes de ser lida em Portugal foi inicialmente publicada no Brasil.
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Autora dos livros de contos Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe era habitual de Vitória F., entretanto abandonado), e Quartos de Final e Outras Histórias, finalista do Prémio Autores SPA 2020 – Melhor Livro de Ficção Narrativa. A autora considera-se sobretudo contista, embora esteja já a trabalhar num segundo romance, e antes de ser lida em Portugal foi inicialmente publicada no Brasil.
João Reis nasceu em Vila Nova de Gaia em 1985. Licenciado em Filosofia, foi fundador e editor da Eucleia Editora, de 2010 a 2012. É tradutor literário, especialista em línguas nórdicas, tendo traduzido para português livros de Knut Hamsun, Halldór Laxness e Patrick White, entre muitos outros. Entre 2012 e 2015, trabalhou e residiu na Noruega, Suécia e Inglaterra, onde exerceu várias profissões, como trabalhar numa cozinha ou num armazém de vinhos. Não deixa de ser curioso o percurso deste jovem tradutor e autor, que aprendeu diversas línguas pela sua própria iniciativa, procurando professores particulares.
A noiva do tradutor, primeira novela do autor (ed. Companhia das Ilhas), é uma narração na primeira pessoa, em corrente de consciência, em que o autor consegue a proeza de levar o leitor a fluir juntamente com o pensamento da personagem principal, um tradutor, que parece zangado com o mundo e com todos, certamente com razão. Mas passadas algumas páginas o leitor não pode deixar de se perguntar até que ponto toda esta injustiça de que o tradutor é vítima será, ou não, responsabilidade dele próprio. As frases distendem-se, entre a descrição, a narração e os constantes à partes do tradutor, que constantemente critica e injuria alguém ou algo, especialmente o país, num domínio perfeito da prosa de um autor que se estreia com esta obra. É difícil não estabelecer alguma relação autobiográfica entre a personagem e o autor, ambos tradutores, nomeadamente quando o protagonista, herói algo pícaro, refere que não se sente bem no seu país e no qual não consegue vingar nas letras ou com traduções.
A Avó e a Neve Russa (Elsinore), primeiro romance do autor escrito no decurso de uma residência literária em Montreal, no Canadá, em 2015, é também ele narrado na primeira pessoa, agora a partir da perspectiva de um menino de dez anos, nascido no Canadá. O menino não tem nome e apenas o conhecemos pela alcunha que alguns amigos lhe dão, Russkiy, da mesma forma que a sua avó Svetlana, centro do mundo deste menino, é designada por Babushka (avó em russo), e que está a morrer com cancro do pulmões, de gases libertados no desastre de Chernobyl. A história tem algo de fábula, como se esta avó representasse também o século XX que se despede, e apesar do menino ser ainda tão novo e inocente, as suas referências ao capitalismo do mundo ocidental vs. comunismo da «Antiga-Soviética», bem como ao Holocausto, são constantes. Não deixa aliás de ser curioso que a certa altura seja um judeu que o acompanha na sua fuga, e que Russkiy considera como a pessoa ideal para o ajudar, justamente por aquilo que terá vivido enquanto judeu, ao mesmo tempo que o menino invoca fragmentos do que ele sabe sobre o Holocausto. A dado momento, o nosso jovem herói dá por si num camião cheio de membros e torsos, corpos desmembrados, que não são pessoas, ao contrário do que ele inicialmente acredita, mas manequins… É assim que o autor consegue encantar o leitor, fazendo-o partilhar do maravilhamento desta criança que ainda está a descobrir um mundo, ao qual não deixa de se sentir estranho, ou não fosse ele um desenraizado, nascido no seio de uma família estrangeira ao local que agora os acolhe, e sendo também órfão, pois a mãe morreu e o pai abandonou-os. É ainda de uma fina ironia que este menino queira chegar ao México à procura de um cacto milagroso, e imagina que um dia pode mesmo construir estufas e plantá-los: «mando construir uma fábrica para fazer chá e pó do cato e vender às pessoas, e aí sim, serei um grande capitalista.» (p. 141) Perguntamo-nos se é de facto um cacto ou se será outra planta milagrosa mexicana, capaz de aliviar as dores e as preocupações…
São igualmente desenraizadas as personagens que compõem o mundo deste menino, como o português Senhor Pereira, com o seu Deus-galo (de Barcelos), e dono de um restaurante, quase de certeza de frango assado; ou o chinês Huan; ou o vagabundo Matt, descendente de judeus.
O autor volta a brincar com a questão da linguagem, não só por uma criança que domina várias línguas, como a língua de herança, o russo, depois o francês, do país em que nasceu e o acolhe, mas especialmente pelos equívocos que esta criança, muito lida e esperta para a idade – ou assim se afirma –, estabelece, como, por exemplo, quando chama gulasch a um gulag, quando assume que oncologia é o estudo dos pássaros (ornitologia), ou quando considera como o irmão gosta de «música metalúrgica». Com subtileza, sem propriamente forçar os equívocos, apesar de por vezes serem repetitivos, o autor consegue criar humor a partir de situações delicadas e levar-nos pelos olhos dessa criança a redescobrir o mundo e as palavras que lhe dão sentido.
A Devastação do Silêncio (Elsinore) é o seu mais recente romance, publicado no dia 16 de Abril, com ilustrações de Lord Mantraste, que tão bem acentuam a crueza e a ironia deste livro.
Afirmava alguém que muitos escritores da nova geração não parecem ter memória do 25 de Abril (até porque não o viveram) nem reconhecer a importância desse momento de cisão, do mesmo modo que alguns destes autores optam por situar as suas narrativas num cenário universal e anódino, sem nada que o torne especificamente português.
Parece sincronia esta coincidência entre a publicação do livro e a efeméride dos cem anos decorridos desde a Batalha de La Lys, em que o Corpo Expedicionário Português foi dizimado. O autor recorda aqui a história de um tio-bisavô, soldado prisioneiro num campo de prisioneiros alemão, durante a Primeira Guerra, sem documentos que o confirmem como oficial, pois foram-lhe roubados, obrigado a partilhar as miseráveis condições de vida dos restantes soldados. O protagonista terá sido «engenheiro na vida civil» (p. 42), estudou em França, e nasceu com uma assimetria corporal do ombro para baixo, o que lhe valeu dispensa, sendo alistado como engenheiro militar, e depois promovido a oficial e a capitão. A sua história é uma vez mais narrada na primeira pessoa, dando a conhecer a Guerra não nos grandes acontecimentos (e mortandades) mas pelo tédio, pela rotina, pela fome e pela pouca higiene: «os piolhos saltavam-lhe do cabelo… estava cheio deles, atafulhado… os outros homens pouco se importavam, pois se não fossem os piolhos, eram os carrapatos, mais sangue, menos sangue… ali, eram essas as batalhas que nos restavam.» (p. 20)
Os prisioneiros morrem não da guerra, mas da doença: «a doença alastrava pelo campo, a tuberculose e a pneumonia matavam-nos aos poucos, no inverno anterior, os romenos haviam morrido às dezenas por conta da gripe (…), os romenos morreram às pazadas, era o que se dizia, que tinham perecido às centenas com disenteria, decerto propagavam-se também todos os géneros de pestilências labiais e linguais… pústulas… carne viva… lacerações…» (p. 22).
Um livro negro, como o primeiro, sarcástico, com laivos grotescos, condizentes à realidade descrita, sem dourados nem subtilezas, mas ainda assim com um fino humor e ironia: «a guerra traria o derradeiro estádio civilizacional dos respectivos povos (…), mais alguns anos e desenvolveríamos guelras e barbatanas» (p. 96).
A narrativa alterna entre um presente, em que o protagonista se encontra com alguém a uma mesa de café – e por isso sabemos que sobreviverá -, enquanto se discute uma gravação com a sua voz. A narrativa é assim um trabalho de rememoração, por vezes com carácter metaficcional. Note-se como o oficial invoca constantemente a necessidade do silêncio – que terá sido aliás a sua melhor arma e garante de sobrevivência durante a guerra: «é preferível manter a ambiguidade, a incerteza, trata-se de uma técnica que utilizei ao longo da vida com enorme proveito» (p. 95). Ao mesmo tempo que invoca a constante vontade em escrever sobre aquilo que testemunha, mas sem papel onde assentar o seu depoimento: «Queria escrever, anotar aquilo em que pensava, o que acontecera no campo nesse dia, decidi não escrever, faltava-me o papel e era inútil, uma perda de tempo, portanto pus-me então à escuta de pássaros» (p. 25).
Português prisioneiro num campo alemão, cria-se também a possibilidade de perspectivar o soldado luso a partir do outro, enquanto simultaneamente se traça uma reflexão acerca desse outro: «Os alemães dedicam-se à ponderação, levantam dúvidas curiosíssimas, é impossível alcançar um tal ponto de civilização nos nossos penhascos e barrancos…» (p. 90)
A Devastação do Silêncio (Elsinore) é o mais recente romance de João Reis, publicado no dia 16 de Abril, com ilustrações de Lord Mantraste, que tão bem acentuam a crueza e a ironia deste livro.
Afirmava alguém que muitos escritores da nova geração não parecem ter memória do 25 de Abril (até porque não o viveram) nem reconhecer a importância desse momento de cisão, do mesmo modo que alguns destes autores optam por situar as suas narrativas num cenário universal e anódino, sem nada que o torne especificamente português.
Parece sincronia esta coincidência entre a publicação do livro e a efeméride dos cem anos decorridos desde a Batalha de La Lys, em que o Corpo Expedicionário Português foi dizimado. O autor recorda aqui a história de um tio-bisavô, soldado prisioneiro num campo de prisioneiros alemão, durante a Primeira Guerra, sem documentos que o confirmem como oficial, pois foram-lhe roubados, obrigado a partilhar as miseráveis condições de vida dos restantes soldados. O protagonista terá sido «engenheiro na vida civil» (p. 42), estudou em França, e nasceu com uma assimetria corporal do ombro para baixo, o que lhe valeu dispensa, sendo alistado como engenheiro militar, e depois promovido a oficial e a capitão. A sua história é uma vez mais narrada na primeira pessoa, dando a conhecer a Guerra não nos grandes acontecimentos (e mortandades) mas pelo tédio, pela rotina, pela fome e pela pouca higiene: «os piolhos saltavam-lhe do cabelo… estava cheio deles, atafulhado… os outros homens pouco se importavam, pois se não fossem os piolhos, eram os carrapatos, mais sangue, menos sangue… ali, eram essas as batalhas que nos restavam.» (p. 20)
Os prisioneiros morrem não da guerra, mas da doença: «a doença alastrava pelo campo, a tuberculose e a pneumonia matavam-nos aos poucos, no inverno anterior, os romenos haviam morrido às dezenas por conta da gripe (…), os romenos morreram às pazadas, era o que se dizia, que tinham perecido às centenas com disenteria, decerto propagavam-se também todos os géneros de pestilências labiais e linguais… pústulas… carne viva… lacerações…» (p. 22).
Um livro negro, como o primeiro, sarcástico, com laivos grotescos, condizentes à realidade descrita, sem dourados nem subtilezas, mas ainda assim com um fino humor e ironia: «a guerra traria o derradeiro estádio civilizacional dos respectivos povos (…), mais alguns anos e desenvolveríamos guelras e barbatanas» (p. 96).
A narrativa alterna entre um presente, em que o protagonista se encontra com alguém a uma mesa de café – e por isso sabemos que sobreviverá -, enquanto se discute uma gravação com a sua voz. A narrativa é assim um trabalho de rememoração, por vezes com carácter metaficcional. Note-se como o oficial invoca constantemente a necessidade do silêncio – que terá sido aliás a sua melhor arma e garante de sobrevivência durante a guerra: «é preferível manter a ambiguidade, a incerteza, trata-se de uma técnica que utilizei ao longo da vida com enorme proveito» (p. 95). Ao mesmo tempo que invoca a constante vontade em escrever sobre aquilo que testemunha, mas sem papel onde assentar o seu depoimento: «Queria escrever, anotar aquilo em que pensava, o que acontecera no campo nesse dia, decidi não escrever, faltava-me o papel e era inútil, uma perda de tempo, portanto pus-me então à escuta de pássaros» (p. 25).
Português prisioneiro num campo alemão, cria-se também a possibilidade de perspectivar o soldado luso a partir do outro, enquanto simultaneamente se traça uma reflexão acerca desse outro: «Os alemães dedicam-se à ponderação, levantam dúvidas curiosíssimas, é impossível alcançar um tal ponto de civilização nos nossos penhascos e barrancos…» (p. 90)
Afirmava alguém que muitos escritores da nova geração não parecem ter memória do 25 de Abril (até porque não o viveram) nem reconhecer a importância desse momento de cisão, do mesmo modo que alguns destes autores optam por situar as suas narrativas num cenário universal e anódino, sem nada que o torne especificamente português.
Parece sincronia esta coincidência entre a publicação do livro e a efeméride dos cem anos decorridos desde a Batalha de La Lys, em que o Corpo Expedicionário Português foi dizimado. O autor recorda aqui a história de um tio-bisavô, soldado prisioneiro num campo de prisioneiros alemão, durante a Primeira Guerra, sem documentos que o confirmem como oficial, pois foram-lhe roubados, obrigado a partilhar as miseráveis condições de vida dos restantes soldados. O protagonista terá sido «engenheiro na vida civil» (p. 42), estudou em França, e nasceu com uma assimetria corporal do ombro para baixo, o que lhe valeu dispensa, sendo alistado como engenheiro militar, e depois promovido a oficial e a capitão. A sua história é uma vez mais narrada na primeira pessoa, dando a conhecer a Guerra não nos grandes acontecimentos (e mortandades) mas pelo tédio, pela rotina, pela fome e pela pouca higiene: «os piolhos saltavam-lhe do cabelo… estava cheio deles, atafulhado… os outros homens pouco se importavam, pois se não fossem os piolhos, eram os carrapatos, mais sangue, menos sangue… ali, eram essas as batalhas que nos restavam.» (p. 20)
Os prisioneiros morrem não da guerra, mas da doença: «a doença alastrava pelo campo, a tuberculose e a pneumonia matavam-nos aos poucos, no inverno anterior, os romenos haviam morrido às dezenas por conta da gripe (…), os romenos morreram às pazadas, era o que se dizia, que tinham perecido às centenas com disenteria, decerto propagavam-se também todos os géneros de pestilências labiais e linguais… pústulas… carne viva… lacerações…» (p. 22).
Um livro negro, como o primeiro, sarcástico, com laivos grotescos, condizentes à realidade descrita, sem dourados nem subtilezas, mas ainda assim com um fino humor e ironia: «a guerra traria o derradeiro estádio civilizacional dos respectivos povos (…), mais alguns anos e desenvolveríamos guelras e barbatanas» (p. 96).
A narrativa alterna entre um presente, em que o protagonista se encontra com alguém a uma mesa de café – e por isso sabemos que sobreviverá -, enquanto se discute uma gravação com a sua voz. A narrativa é assim um trabalho de rememoração, por vezes com carácter metaficcional. Note-se como o oficial invoca constantemente a necessidade do silêncio – que terá sido aliás a sua melhor arma e garante de sobrevivência durante a guerra: «é preferível manter a ambiguidade, a incerteza, trata-se de uma técnica que utilizei ao longo da vida com enorme proveito» (p. 95). Ao mesmo tempo que invoca a constante vontade em escrever sobre aquilo que testemunha, mas sem papel onde assentar o seu depoimento: «Queria escrever, anotar aquilo em que pensava, o que acontecera no campo nesse dia, decidi não escrever, faltava-me o papel e era inútil, uma perda de tempo, portanto pus-me então à escuta de pássaros» (p. 25).
Português prisioneiro num campo alemão, cria-se também a possibilidade de perspectivar o soldado luso a partir do outro, enquanto simultaneamente se traça uma reflexão acerca desse outro: «Os alemães dedicam-se à ponderação, levantam dúvidas curiosíssimas, é impossível alcançar um tal ponto de civilização nos nossos penhascos e barrancos…» (p. 90)
Sobre o autor: João Reis nasceu em Vila Nova de Gaia em 1985. Licenciado em Filosofia, foi fundador e editor da Eucleia Editora, de 2010 a 2012. É tradutor literário, especialista em línguas nórdicas, tendo traduzido para português livros de Knut Hamsun, Halldór Laxness, August Strindberg e Patrick White, entre muitos outros.
Entre 2012 e 2015, trabalhou e residiu na Noruega, Suécia e Inglaterra, onde exerceu várias profissões. Escreveu o romance A Avó e a Neve Russa no decurso de uma residência literária em Montreal, no Canadá, realizada em 2015. Nesse mesmo ano, foi finalista do Bare Fiction Prize na categoria de flash fiction e publicou a sua novela A Noiva do Tradutor (ed. Companhia das Ilhas).»
«A Grande Guerra assola a Europa do início do século XX. Um capitão do Corpo Expedicionário Português encontra-se num campo de prisioneiros alemão, sem documentos que atestem a sua patente de oficial, obrigado a partilhar a vida e o destino dos seus conterrâneos mais pobres. Tem fome, ouve detonações constantes, observa, sonha, procura um sentido para tudo aquilo que o rodeia, tenta terminar o relato de uma estranha história sobre cientistas alemães e gravações de voz, procura desesperadamente o silêncio e, acima de tudo, a paz das coisas simples.»
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