O livro recentemente lançado de Teolinda Gersão, O regresso de Júlia Mann a Paraty, autora publicada pela Porto Editora, celebra os seus 40 anos de vida literária, em simultâneo com a publicação da 7.ª edição da colectânea de contos A mulher que prendeu a chuva e outras histórias.
Este pequeno grande livro compõe-se de três novelas que se entrecruzam, de modo surpreendente, e que parecem ressoar o período em que Teolinda Gersão foi leitora de português na Universidade Técnica de Berlim (a autora viveu três anos na Alemanha), e professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada.
(…)
O virtuosismo na arte da novela de O regresso de Júlia Mann a Paraty reside sobretudo na forma como assenta em cartas, diálogos mudos que se estabelecem com interlocutores ausentes, como Mann que escreve a Freud em pensamento e vice-versa, ou na forma como Júlia escreve mentalmente ao pai cartas nunca enviadas. Virtuosismo narrativo que culmina num volte-face, presente e insinuado, mas revelado apenas no final. Ver artigo
1984, de George Orwell, foi publicado pela Livros do Brasil na colecção Dois Mundos em simultâneo com a Quinta dos Animais. Dois clássicos fundamentais agora reeditados por uma boa parte das grandes editoras (a capa da Porto Editora conta ainda com ilustrações de Vhils), assinalando a entrada da obra de Orwell em domínio público, que procuram novos leitores ou simplesmente uma releitura, uma vez que parece ter chegado o tempo das distopias, entre pandemia, desgovernação, novas tecnologias, e a ascensão de regimes neofascistas. Note-se que logo em 2017, com a eleição de Trump, as vendas de 1984 (originalmente publicado em 1949) dispararam.
Winston Smith, de 39 anos, é um funcionário do Ministério da Verdade cuja função é reescrever a História. Vive em Londres, a principal cidade de Pista Um, terceira província mais populosa da Oceânia, onde a filosofia dominante é o Socing. O mundo está dividido em três grandes superestados, Oceânia, Estásia, Eurásia, em guerra permanente há 25 anos.
Corre o ano de 1984, se bem que Winston não tem já a certeza, pois ao reescrever a História falsifica-se todo o passado e apesar de ele próprio contribuir para tal não tem como o provar: «Todos os registos foram destruídos ou falsificados, todos os livros foram reescritos, todos os quadros foram repintados, todas as estátuas e ruas foram renomeadas, todas as datas foram alteradas. E esse processo continua, dia após dia, minuto após minuto. A história parou. Nada existe a não ser um presente sem fim no qual o Partido tem sempre razão.» (p. 160)
A reescrita da verdade, aliada à ideia de se viver numa guerra permanente, permite a uma sociedade completamente hierarquizada, descendente dos antigos regimes totalitários, manter a sua estrutura intocável. Os habitantes da Oceânia, cuja vestimenta foi em tempos uma farda dos trabalhadores manuais, vivem na pobreza e ignorância, o que se tornou fácil com a manipulação da ordem pública pela imprensa e uma vigilância permanente por parte do Grande Irmão, figura que parece viver nos telecrãs omnipresentes que tudo registam e tudo emitem, num escrutínio que parece até capaz de ler pensamentos. Por isto, acções simples como Winston registar os seus pensamentos num diário ou amar Julia revelam-se actos criminosos:
«Antigamente, pensou, um homem olhava para o corpo de uma mulher e sentia desejo, ponto final. Mas, hoje em dia, não era possível ter um amor puro, nem desejo puro. Nenhuma emoção era pura, porque estava tudo misturado com medo e ódio. O abraço tinha sido uma batalha, o clímax uma vitória. Tinha sido um golpe contra o Partido. Tinha sido um ato político.» (p. 131) Ver artigo
As Mulheres da Minha Alma, de Isabel Allende, publicado simultaneamente pela Porto Editora e pelo Círculo de Leitores em Novembro de 2020, com o subtítulo Sobre o amor impaciente, a vida longa e as bruxas boas, é o mais recente livro de Isabel Allende, pouco menos de um ano depois do seu retorno à ficção histórica em Longa pétala de mar, poderoso romance ao nível dos melhores livros da autora. Isabel Allende tem agora quase 80 anos, mais de 20 livros publicados, cerca de 70 milhões de exemplares vendidos um pouco por todo o mundo e é a autora de língua espanhola mais lida.
Este não é o primeiro livro de não-ficção da autora, mas é certamente dos mais complexos, construído num palimpsesto. Apesar de começar com um tom memorialista, num registo autobiográfico da infância à idade madura, converte-se depois num manifesto feminista, onde não faltam números, estatísticas, citações, situações experienciadas em primeira mão e dados preocupantes que revivificam a jornalista que Isabel Allende era antes de se dedicar à escrita por inteiro. Allende criou aliás uma Fundação destinada ao empoderamento das mulheres e meninas de alto risco com as receitas provenientes do livro Paula, uma memória e uma carta de celebração da vida da sua filha – não lhe podemos chamar despedida pois para Allende a sua filha Paula, tal como outros espíritos amigos, nunca partiu completamente.
Este livro, escrito para as suas leitoras, é também uma declaração de amor para essas mulheres extraordinárias que compuseram a sua vida – Paula, a agente literária Carmen Balcells, a mãe Panchita – e que nós já conhecemos tão bem como as suas personagens de papel, como a omnipresente Eliza Sommers (heroína de Filha da Fortuna), além de outras mulheres cuja vida tem sido dedicada a tornar o mundo um lar para todas as mulheres, e ainda escritoras companheiras de percurso que Allende vai evocando e citando, como Margaret Atwood ou Virginia Woolf. Mas além do feminismo este é também um livro sobre envelhecer com graciosidade e sobre o amor, mesmo em tempos de pandemia. Ver artigo
Os Tempos do Ódio, de Rosa Montero, publicado pela Porto Editora, é o último volume de uma trilogia (Lágrimas na Chuva e O Peso no Coração). É um romance intenso e certamente corajoso, no mínimo desconcertante para quem conhece Rosa Montero por A Louca da Casa em que a autora cria um futuro possível para o mundo em que vivemos. Trata-se de uma narrativa que ingressa nas potencialidades da ficção científica, e não o faz recorrendo a fantasia ou a indefinição acrónica, mas sim com base em todo um universo cuidadosamente imaginado pela autora, e que de alguma forma já tem sido premonitório de eventos entretanto ocorridos – após publicação dos primeiros 2 volumes da trilogia, conforme a própria autora nos explica na sua nota final: «Digo sempre que os romances de Bruna Husky são os mais realistas que já escrevi. De facto, são de um realismo um pouco inquietante, porque às vezes sinto que a atualidade vai confirmando as minhas invenções.» (p. 310)
Bruna Husky é uma rep tecno-humana de combate, isto é, uma andróide, um ser orgânico, mas hipermanipulado por engenheiros genéticos. Quase humana, são clones que amadurecem aceleradamente e que em 14 meses atingem os 25 anos de idade, mas com um prazo de validade curto, pois vivem apenas por 10 anos ao que depois “morrem” em agonia durante 2 semanas. Bruna Husky é independente, individualista, destemida, e tem uma intuição que raia o sobrenatural – uma espécie de sexto sentido hiperhumano. Contudo tem também um grande coração, ainda que o tente dissimular – e conforme nos embrenhamos na narrativa a nossa heroína híbrida tornar-se-á cada vez mais humana, capaz de experienciar ódio, ciúme e amor. Ou não fosse Bruna Husky proveniente do material genético de uma escritora e jornalista de há cem anos, chamada Rosa Montero…
O livro tanto lança uma ponte para um futuro possível, daqui a cem anos, como recupera factos históricos de um passado mais remoto, cheio de dados reais, das trivialidades à antiga paixão do homem pela criação de autómatos, passando pela Ordem de Rosa-Cruz.
Os Tempos do Ódio pode desencorajar aqueles que não apreciem particularmente ficção científica, mas este livro é também um thriller policial, num mundo em crise, à beira de uma guerra mundial interplanetária, onde tudo depende da tecnologia. É uma leitura intensa e emocionante (devorei-o num único dia), onde não deixam de estar presentes os principais temas da escrita de Rosa Montero: a efemeridade da vida, a passagem do tempo, a paixão como superação da morte, o amor ao próximo como caminho para uma vida plena, a luta contra o poder e a injustiça social.
A autora nasceu em Madrid, em 1951. Como jornalista, colabora em exclusivo com o jornal El País, tendo obtido, em 1980, o Prémio Nacional de Jornalismo e, em 2005, o Prémio da Associação da Imprensa de Madrid, por toda a sua vida profissional. Com A Louca da Casa recebeu o Prémio Grinzane Cavour de Literatura Estrangeira e o Prémio Qué Leer para o melhor livro espanhol, distinção que também foi atribuída, em 2006, a História do Rei Transparente. Recebeu, em 2017, o Prémio Nacional das Letras Espanholas pelo conjunto da sua obra. Ver artigo
Depois da originalidade e sucesso do seu romance de estreia é quase sempre difícil a um autor voltar a uma história tão poderosa e arrebatadora quanto a sua primeira. O Golfinho, o mais recente livro de Mark Haddon, autor de O Estranho Caso do Cão Morto (2003), com uma límpida tradução de Francisco Agarez e publicado pela Porto Editora, é um belo exemplo de arrebatadora e pujante prosa.
Viktor, Rudy e Maja, uma jovem mulher de beleza deslumbrante, actriz de televisão e gravidíssima, embarcam num pequeno avião. Duas horas depois, estão os três mortos e a criança que estava no ventre de Maja será a única sobrevivente desse desastre aéreo. E não, esta não é uma sinopse de todo o livro, pois ainda nem chegámos ao fim do primeiro capítulo.
A prosa de Mark Haddon é absolutamente deslumbrante e envolve-nos numa história que encanta como as de antigamente, até porque a intriga se distende numa ténue linha entre a efabulação própria das histórias de fantasia e o real. Quando a cabeça de Viktor, o piloto, acaba decepada na queda do avião e enterrada num lameiro nas proximidades, é difícil não interpretar esse evento como um castigo divino pela sua irresponsabilidade e distracção, perturbado pela beleza de Maja, que seguia consigo no avião. Ou quando Angelica, a menina com nome de contos de fadas que sobrevive, é criada pelo pai extremamente rico numa complexa e sofisticada clausura, no que hoje equivale a uma torre de marfim, sendo o pai o dragão que a guarda. Ou quando o jovem impante Darius tenta salvar Angelica, não será mera coincidência que surja num BMW série 3 branco.
Em suma, cada evento, por muito ordinário que se afigure, está sempre eivado de alguma simbologia, ou talvez seja a imaginação fértil de um leitor, estimulada por livros como este, a conferir-lhes esse sentido adicional, da mesma forma que Angelica é uma leitora ávida de mitologia. Mas a partir do terceiro capítulo, epónimo do livro, esta narrativa tira-nos por completo o tapete e leva-nos para novos mares, conforme parece dar lugar a uma outra história, em tempos míticos, com Péricles, príncipe de Tiro, a bordo do navio Golfinho, ou ainda quando nos leva, mais à frente, para a Londres dos tempos de Shakespeare.
O poder encantatório da efabulação, das possibilidades da ficção, os ecos da mitologia e o simples e velho prazer de contar e ouvir uma história tomam o leme e conduzem o leitor para águas cada vez mais profundas, onde se redescobre o prazer de ler, de ser completamente mergulhado numa história ao ponto de sairmos dela transformados. Pois, tal como cada uma destas personagens traz em si uma história (por vezes mais do que uma) – histórias que podem aliás revelar a sua verdadeira identidade –, também o leitor irá construir a sua própria história a partir deste vórtice de imaginação que comprova como as histórias mais antigas se podem renovar até ao fim dos tempos. Ver artigo
No dia 6 de Agosto chega às livrarias Epítome de pecados e tentações, o novo livro de Mário de Carvalho, publicado pela Porto Editora, o que, convenhamos, não é de todo inesperado ou surpreendente, uma vez que o autor tem vindo a publicar a um ritmo regular, principalmente desde A Sala Magenta, em 2008, alternando entre a novela, o conto e o romance, mas também passando pelo ensaio com Quem Disser o Contrário É Porque Tem razão em 2014. Mário de Carvalho, um dos autores mais importantes da nossa literatura na contemporaneidade, regressa ao conto.
Originalmente previsto para ser lançado em Março de 2020, conforme consta na ficha técnica, também este livro se viu forçado a alguns meses de confinamento social pelo que só agora lhe é possível ver a luz e dar o ar da sua graça. Pois, se bem que Mário de Carvalho se revele como um escritor prolífico, praticando os mais diversos géneros, e capaz de uma técnica exímia nos mais diversos estilos – do romance histórico à sátira –, é sobretudo pela fina ironia e pela doce crítica que os seus contos se destacam.
Dividido em 3 partes, este livro é constituído por 11 breves narrativas: na primeira parte, poderemos considerar que as duas narrativas são novelas, dada a sua extensão; na segunda parte, temos 8 narrativas mais curtas, contos cuja dimensão varia entre as 8 a 4 páginas; e na terceira parte, um único conto.
Pode ler-se na contracapa que este é um livro «de pecados que pedem total absolvição», todavia a venialidade do venéreo é, também, substituída por uma certa banalidade do mal, pois estes «Fascínios, inquietações e sobressaltos nas relações entre homens e mulheres» que entretecem as várias narrativas, formando um mosaico de adultério e leviandade, parecem ser mais a norma do que a excepção nos casamentos e nos relacionamentos modernos. Ver artigo
As aves não têm céu é o novo romance de Ricardo Fonseca Mota, publicado pela Porto Editora.
Leto é um homem à beira do precipício, que cruza a cidade nas noites insones, atormentado pela memória recorrente da morte da filha, de que se sente responsável: «Leto não dorme. Desde essa noite fechar os olhos passou a ser um acto proibido. Não esquecer a dor é a última prova de amor.» (p. 13)
Atormentado pela culpa, reinventando um futuro possível para a filha, mas sempre consumido pela memória da noite em que a perdeu no negrume da morte, no fundo escuro de um penhasco, este pai quer «morrer mas não quer parar de sofrer. Quer sofrer mas sente vergonha de estar vivo.» (p. 13)
Deixado pela mulher, divorciado, deprimido, oprimido pelo remorso da culpa, medicado, despedido, desalojado, Leto vive imerso numa noite escura, percorrendo uma cidade deserta, onde pouca gente se move naquele horário, mas é também no colo de uma mulher que ele entrevê uma luz salvífica.
O narrador, omnipresente ao longo do texto, assume-se, por vezes, na primeira pessoa do singular, mas, geralmente, na primeira pessoa do plural, conforme tenta deixar claro ao leitor que apenas pretende contar a história conforme a conheceu. História esta que ganha também contornos de tragicomédia quando o narrador, que tanto diz noutras passagens, indicia muito subtilmente, ainda no início do romance, a possibilidade de Leto não ser realmente o pai da criança…
Numa linguagem lírica, com passagens em que a prosa respira e pulsa como um poema, Ricardo Fonseca Mota incorre ainda num certo experimentalismo, em que a narração feita a partir da perspectiva da personagem é entrecortada, com falas ou com frases que umas vezes se completam intercaladamente e noutras ficam por fechar, como quem tenta registar o próprio pensamento desconexo de Leto, que vive numa linha ténue entre a loucura (ou a doença mental) e o passado suspenso num momento eterno de um trauma.
Ricardo Fonseca Mota nasceu em Sintra em 1987 e vive na Tábua. O seu primeiro romance, Fredo (Gradiva), venceu o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís em 2015, foi semifinalista do Oceanos, Prémio de Literatura em Língua Portuguesa, em 2017, e está traduzido e publicado na Bulgária. Formado pela Universidade de Coimbra, é psicólogo clínico e promotor cultural. Ver artigo
Gabriel planeia celebrar o octagésimo aniversário da mãe e, para isso, terá de contactar as suas duas irmãs Sonia e Andrea, com o propósito de reunir a família para este evento que deveria ser motivo de celebração e alegria. Depois de tanto tempo, um almoço de aniversário afigura-se a ocasião perfeita para se voltarem a juntar todos. Mas esta não é uma família dessa natureza. Se todas as famílias são felizes à sua maneira, esta sabe foçar particularmente bem na infelicidade e no rancor. Por isso mesmo esta sinopse enganosamente simples não pode dar conta da complexidade e singularidade deste romance.
Luis Landero constrói um poderoso romance polifónico, cuja maioria dos capítulos constitui diálogos, sempre por telefone, em que a conversa telefónica do momento alterna ainda, por vezes de modo sobreposto, com conversas anteriores que estão a ser agora relatadas ou recontadas ao telefone, pois quer Sonia quer Andrea, assim que ficam a par da intenção do irmão, ligam para a cunhada Aurora, a mulher de Gabriel, com quem desabafam as suas mágoas e os seus rancores. E é nesses telefonemas de Sonia, Andrea e, por vezes, até da mãe delas para Aurora, a confidente, sempre atenciosa e atenta, que estas mulheres destilam a peçonha que, décadas depois, continuam a conseguir extrair de velhos episódios familiares, retratados conforme a perspectiva de cada uma: «cada qual com a sua história, horas e horas de histórias intermináveis, quase todas cheias de minúcias mil vezes ouvidas e que elas nunca se cansavam de repetir, com as suas versões contraditórias, onde não havia episódio, por mais pequeno que fosse, que não tivesse variantes, que não rebatessem ou negassem entre elas, que não admitissem os mais prolixos e tortuosos comentários, de modo que Aurora tinha a esgotante impressão de estar imersa num pesadelo de que era impossível despertar.
E assim, ano após ano, todos os dias de todos os meses, a qualquer hora, foi ficando a saber o argumento exato das vidas deles.» (p. 195)
Um só acontecimento origina assim várias versões, relatos antagónicos, sentimentos díspares, conforme é lembrado por cada uma das personagens. A narrativa abre e fecha com Aurora, que pelo seu sorriso bonito e triste, o seu ar terno e melancólico, sempre se revelou uma boa confidente para as histórias dos que com ela convivem. Mas Aurora coloca em risco a sua própria inocência e paz de espírito quando finalmente percebe que não há histórias inocentes, enquanto se deixa enredar nas teias de aranha destas histórias familiares: «(…) todas as versões de todas as histórias acabam por confluir em Aurora. Ela é, na verdade, a única dona absoluta da história, aquela que sabe tudo, o enredo e o avesso do enredo, porque só confiam nela e só falam com ela, com todo o tipo de detalhes, sem vergonha nem reparos, todos e cada um dos implicados nesta história, que começou por ser trivial e até festiva e que acabou em ruína e em desastre, como ela intuiu desde o primeiro momento.» (p. 13)
Uma forte particularidade do romance é o modo como a vida das personagens é sempre tratada como uma história, em que todas elas são autoras das suas próprias narrativas, mesmo quando essa é uma narrativa vazia: «Nunca, nunca, mesmo que não aconteça nada, as pessoas param de contar a sua história e, se o Inferno existir, também nele continuarão a contá-la ao longo de séculos e mais séculos, dando corda uma e outra vez ao brinquedo das palavras, tentando compreender minimamente o mundo apalpando o absurdo da vida em busca talvez de um botão que abra o seu fecho cego, como a gruta de Ali Babá ante o conjuro da palavra mágica, revelando-nos o grande tesouro da razão, da luz, do real sentido das coisas…» (p. 199)
A acção decorre ao longo de seis dias apenas, em que os segredos familiares são desenterrados, até que se desvela uma história particularmente macabra em torno de um homem que tem em casa um museu de brinquedos e que trata a mulher como se fosse a sua criança…
Luis Landero, considerado um dos nomes essenciais da literatura espanhola, nasceu em Badajoz, em 1948. Licenciado em Filologia Hispânica pela Universidad Complutense, lecionou Literatura na Escuela de Arte Dramática de Madrid e foi professor convidado em Yale. Estreou-se na literatura em 1989, com o romance Jogos da Idade Tardia (Prémio da Crítica e Prémio Nacional de Narrativa 1990). Chuva Miúda, agora publicado pela Porto Editora e com tradução de Miguel Filipe Mochila, foi considerado pela crítica o Melhor Romance do Ano em Espanha. Ver artigo
Este pequeno belo romance inscreve-se na senda de obras como Siddhartha, de Herman Hesse, ou de outras mais recentes, como As Oito Montanhas, de Paolo Cognetti, ou O Amigo do Deserto, de Pablo d’Ors, enquanto apologia do despojamento, da solidão, da natureza como caminho da serenidade e do encontro com a verdade. Uma narrativa sóbria, contida, quase como uma sinfonia em monotom, onde se conta a vida de Andreas Egger, uma existência inteira que, sem ruído nem brilho, atravessa um século.
«Em criança, Andreas Egger nunca tinha gritado nem dado vivas. Aliás, só começara a falar propriamente dito quando entrara para a escola. A custo, arrecadara um punhado de palavras que, em ocasiões raras, recitava aleatoriamente. Falar significava chamar a atenção, o que nunca era uma boa coisa. Chegara à aldeia muito novinho, numa carruagem puxada por cavalos, no verão de 1902, vindo de uma povoação distante, para lá das montanhas. Quando o tiraram da carruagem, ficou parado, mudo, de olhos arregalados, observando, estupefacto, os cintilantes cumos brancos. Devia ter cerca de quatro anos, na altura» (p. 13)
Criado por um familiar distante, um agricultor que apenas acolhe a criança pela bolsa de notas que traz ao pescoço e o agride a despropósito com uma vara de avelaneira, Andreas tudo suporta de forma estóica, quase bovina, numa espécie de mutismo animal, sem nunca se queixar, sem nunca gritar, mesmo quando fica fisicamente marcado pelas sovas que sofre, que o deixam com uma perna torta e coxo. A resiliência de Egger, aliada à sua força física, permitem-lhe sobreviver à perda da única mulher que amou por breves e fugazes instantes, à guerra, à fúria das avalanches das montanhas alpinas, à chegada do progresso quando o vale é devassado por maquinaria para a construção de um teleférico.
Após o seu passeio de quase um século pela vida, Egger converter-se-á em guia da montanha: «Em vez de falar, preferia ouvir as pessoas, cujas conversas ofegantes lhe revelavam os segredos de outros destinos e opiniões. As pessoas iam às montanhas claramente em busca de algo que acreditavam ter perdido havia muito tempo. Ele nunca conseguiu perceber ao certo o que era, mas, ao longo dos anos, foi-se convencendo de que os turistas avançavam pela montanha fora, não tanto atrás dele, mas atrás de um qualquer anseio obscuro e insaciável.» (p. 92)
Publicado pela Porto Editora, Uma Vida Inteira, de Robert Seethaler, foi Livro do Ano em 2014 na Alemanha onde vendeu mais de um milhão de exemplares, foi finalista do Man Booker International em 2016 e do International Dublin Award em 2017. Ver artigo
Jonathan Coe nasceu em Birmingham, em 1961. Em 2004, foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras de França. O Coração de Inglaterra, agora publicado pela Porto Editora, regressa ao díptico Rotter’s Club (2001) e O Círculo Fechado (2004), onde, curiosamente, já se prenunciavam alguns dos temas aqui explorados, 18 a 15 anos antes, naquele que é considerado o primeiro romance pós-Brexit (a par de A Barata, de Ian McEwan, que apresentarei em breve). Iniciado em 2016, logo após o referendo que conduziu à retirada do Reino Unido da União Europeia, este livro é uma inteligente sátira, onde não falta humor, que não se aparta muito da realidade – apenas a disseca aos olhos de múltiplas personagens de diferentes gerações. Começa com o funeral da mãe de Benjamim, o que simboliza em si a morte de uma velha Inglaterra – não é mera coincidência que a música que Benjamim ouve nessa noite tenha por mote «Adeus, antiga Inglaterra». De entre as várias personagens do romance, destacar-se-á Benjamim, um escritor de meia-idade, cuja geração é a do autor, e que tal como ele é um escritor, embora o seu romance seja um projecto inacabado de há décadas e com uma envergadura intimidante…
A expressão que dá origem ao título original do romance, Middle England, é referida várias vezes. Primeiramente, como alusão à Terra Média de Tolkien, como se a Inglaterra do livro fosse uma realidade alternativa, quando está, afinal, muito próxima da realidade, explorando de forma irónica e acutilante diversos temas que ajudam a reconhecer a complexa trama social e política que resultou no Brexit: «- As pessoas da Inglaterra Média (…) votaram em David Cameron por não terem verdadeira escolha. A alternativa era impensável.» (p. 230) Em segundo lugar, a expressão Inglaterra Média designa as pessoas da classe média que tendem ao conservadorismo e vivem fora de Londres – um pouco como Benjamim que vive num moinho junto ao rio, um verdadeiro cenário idílico campestre –, ou seja os eleitores que, supõe-se, terão votado a favor do Brexit, pois constatou-se que em Londres a maioria votou contra.
O romance analisa, de forma audaz, a nova Inglaterra, politicamente correcta, onde a caçada à raposa é agora proibida, não tanto pela violência deste “desporto” mas por uma questão de luta de classes, e centra-se num país multicultural – ainda que personagens como Sohan e Aneeha sejam secundárias – onde até na literatura se reflecte como «o tempo do grande escritor britânico branco e de meia-idade acabou finalmente» (sim, Coe também cabe nesta categoria), pois agora há «mais mulheres, mais escritores negros, asiáticos e de outras minorias étnicas» (p. 237). Ver artigo
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