A Quinta dos Animais, de George Orwell, chegou-nos no final de 2020 numa nova edição da Antígona, com tradução revista pelo tradutor Paulo Faria, ainda antes das várias edições e traduções pelas mais variadas editoras que no início deste ano assinalaram a nova temporada literária – resultado da entrada em domínio público da obra de Orwell. Pode ainda ser considerada a mais completa edição portuguesa de Animal Farm, porque além de uma introdução, uma nota acerca do texto e uma nota do tradutor, assim como dois prefácios escritos pela mão do próprio Orwell.
Escrita em 1945, esta obra revela como o comunismo na Rússia e na Europa de Leste assumiu cada vez mais a aparência de uma nova sociedade de classes. Fábula satírica, que em tom ligeiro, muito subtil, e com momentos divertidos, tão cómicos quanto trágicos, nos conta, ao jeito de uma «história de encantar», como os animais da Quinta do Infantado se revoltam contra os humanos e depois se tornam na mais próspera unidade de produção rural dos arredores. Mas os porcos rapidamente submetem os outros animais a uma ditadura, explorando-os e levando-os a trabalhar mais e mais. E o que é sublime é a forma como esta escravatura decorre sempre na plena inconsciência de todos os animais, à parte do ajuizado burro que é quem mais enxerga.
Esta edição mantém o compromisso assumido na de 2008, explica o tradutor, e continua a renegar o título panfletário O Triunfo dos Porcos, honrando o desejo de Orwell de contar, a crianças e adultos, «uma história de encantar». E é precisamente como uma história de encantar que o livro pode ser lido, apesar da leitura política subjacente, até porque «os animais da quinta tinham o hábito um pouco palerma de se tratar uns aos outros por “Camarada”» (p. 145). Ao contrário de outras traduções saídas este mês, o tradutor assumiu a ousada e sábia decisão de traduzir para português todos os nomes próprios das personagens (Napoleão, Trovão,…) e lugares (Benquerença), o que só enriquece o texto, tornando a sua leitura intemporal. Ver artigo
Não podia terminar o ano sem um livro que fui adiando de propósito para esta altura. Primeiro porque seria um reencontro, pois li há anos o Sobre a Leitura, de Marcel Proust, numa edição da Teorema intitulada O Prazer da Leitura, e um prazer redescoberto, pois agora surge novinho publicado pela Relógio d’Água com uma nova tradução (e também pela Antígona, numa edição lançada em simultâneo). E o sentimento mantém-se. Tal como o autor nos diz logo na abertura deste ensaio: «Talvez não haja dias da nossa infância que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que cremos ter deixado sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido.» (p. 7)
Seja na infância, seja na adolescência, ou no caso de alguns leitores inveterados, no resto dos seus dias, consigo recordar certos períodos da minha vida mediante uma memória associativa do livro que estava a ler então, assim como do sítio em que o lia, não sentado na poltrona com um manto de rosas brancas de croché como Proust mas usualmente sobre a cama (e ainda hoje a minha zona lombar se ressente das longas horas de leitura deitado de barriga para baixo). A vantagem do leitor perante um Proust infante é óbvia, pois não se corre o risco de ter de interromper a leitura ao ser chamado para o «demorado» almoço (p. 10) ou ter de esperar pela autorização dos pais ou de acender uma vela durante a noite para incorrer numa insónia. Mas independentemente do livro em que estejamos imersos, e de quão profundo o mergulho, é também a «imagem dos lugares e dos dias» (p. 19) em que fizemos tais leituras que perdura, como o autor comprova ao dissertar durante 20 páginas sobre tudo o que o rodeia, e o emoldura, e não propriamente a leitura ou o livro aberto. A sensação que temos ao ler este ensaio, de início, é aliás como estar novamente imerso na leitura de Do Lado de Swann, primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido (nessa belíssima tradução musicada de Pedro Tamen, também publicada pela Relógio d’Água), quando o narrador nos reconduz pela memória da sua infância. E também não falta a estas páginas uma certa sinestesia proustiana, quando ao som dos sinos associa o odor dos bolos açúcarados. Conforme afirma o autor, ao querer falar delas, as leituras, «falei de coisa completamente diferente dos livros porque não foi deles que elas me falaram. Mas talvez as recordações que me trouxeram uma atrás da outra tenham elas mesmas despertado no leitor e o tenham pouco a pouco levado , enquanto se demorava nesses caminhos floridos e cheios de rodeios, a recriar no seu espírito o ato psicológico original chamado Leitura» (p. 21). A partir daqui, naquela que é a segunda metade do ensaio, quebra-se um pouco a magia do poder evocativo da leitura em paralelo com a revivificação da memória conforme o autor decide alinhavar as suas «poucas reflexões» que lhe restam. Entre Ruskin e Racine, passando por outros autores e também pintores – porque estes nos ensinam «à maneira dos poetas» (p. 26) –, Proust destila os seus pensamentos sobre «o papel ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual» (p. 26), ao mesmo tempo que alerta certos leitores mais vorazes (não vou dizer nomes…) para os perigos da leitura, quando esta ao invés de despertar o espírito, a inteligência, tende a substituir a vida. Ver artigo
Publicada pela Antígona, em Março deste ano, Tono-Bungay é, possivelmente, a obra mais complexa de Herbert George Wells (1866-1946), e para muitos a sua obra-prima. Romancista visionário, considerado como o pai da ficção, conhecido principalmente por A Máquina do Tempo (1895), O Homem Invisível (1897) ou A Guerra dos Mundos (1898). Ávido leitor de Jonathan Swift e Charles Dickens, nota-se aqui uma influência deste último, na forma como narra a vida do protagonista desde a sua tenra idade. Tono-Bungay (1909) apresenta-se como as memórias de George Ponderevo, desde a sua juventude vitoriana até à idade adulta na Londres industrial, na qual consegue ganhar uma posição de privilégio e destaque ainda que às custas do negócio de um elixir milagroso, cujas propriedades são meramente por sugestão através de publicidade enganosa, negócio cuja legitimidade o próprio George contesta desde o início, todavia sem que isso o impeça de participar na tramóia do tio, enquanto procura prosseguir com outros projectos, nomeadamente o de querer voar (podendo este desejo de voar ser uma metáfora para ascensão social). Tal como o autor, o protagonista e narrador é um homem de ciência: há quem defenda que o próprio romance é, em parte, autobiográfico. Mas a principal personagem, apesar de parecer ser tão somente o cenário, é a cidade de Londres, pano de fundo para uma forte sátira social, eivada de ironia, e uma crítica profunda ao capitalismo, aqui ainda nos seus primórdios, que se distende a partir da época industrial, bem como à clivagem social:
«É uma cidade grandiosa. Imensa. A cidade mais rica do mundo, o maior porto, a maior cidade industrial, a capital do império: o centro da civilização, o coração do mundo! (…) Pobreza como esta, não encontras em Wimblehurst, George! E muitos deles estudaram em Oxford.» (p. 107)
É um romance que requer tempo, cuja narrativa revoluteia numa respiração calma, em crescendo, ao longo de 469 páginas, em que a narrativa e o primor da linguagem se entrelaçam magnificamente, sem nunca largar a atenção deliciada do leitor, mesmo quando incorre numa natureza mais próxima do fantástico ou do romance de aventura. Ver artigo
John Berger (1926-2017), crítico de arte, pintor e escritor inglês, é considerado um ícone da contra-cultura e um dos pensadores mais influentes da actualidade. Exilou-se na França rural por mais de meio século como forma de escapar ao capitalismo e aos abusos do governo. Modos de Ver, agora publicado pela Antígona, foi escrito em 1972 e é o seu ensaio mais famoso, escrito na sequência do êxito obtido com a série homónima da BBC, transversal a vários públicos, e quase 50 anos depois permanece uma referência na crítica de arte como objecto de estudo dos académicos. Na «Nota ao Leitor» explicita-se, contudo, que o livro é produto de 5 autores: John Berger; Sven Blomberg; Chris Fox, Michael Dibb e Richard Hollis. Partindo de algumas das ideias contidas na série, aqui aprofundadas, o livro compõe-se de sete ensaios numerados mas que não implicam uma leitura sequencial. Três desses ensaios são visuais, isto é, compostos exclusivamente por imagens de obras de arte e a informação sobre as reproduções surge apenas no final do livro, para não «distrair o leitor do que aí se pretende enfatizar» (pág. 15).
No primeiro ensaio, um pouco mais genérico, aborda-se a imagem, nomeadamente na pintura, e a forma como esta comunica com o espectador, porque apesar de o acto de ver ser algo natural ao ser humano, e um dos primeiros sentidos a desenvolver, o olhar é um gesto voluntário, reflexivo, e enquadrado por aquilo que conhecemos e em que acreditamos: «Ver vem antes das palavras. Mesmo antes de saber falar, a criança olha e reconhece.» (pág. 17); «Só vemos aquilo para que olhamos. Olhar é um acto de escolha.» (pág. 18)
No terceiro ensaio (dos quatro ensaios compostos por palavras e imagens ilustrativas), aborda-se especificamente a nudez feminina na pintura e como esta serve a fruição estética e sexual de um espectador que se subentende masculino, além de que os produtores dessa arte foram eles próprios homens – seria aliás interessante contemplar a existência ou não de uma nudez no feminino representada por mulheres pintoras.
No sétimo ensaio, analisa-se como a sociedade contemporânea (relembre-se que falamos do início dos anos 70) vive rodeada de imagens como nunca antes aconteceu. A pintura outrora ao serviço das elites deu lugar a uma popularização da imagem publicitária que invadiu o nosso campo de visão e absorvem a nossa atenção mesmo que involuntária ou inconscientemente. É neste último ensaio que se sente a posição crítica de John Berger ao capitalismo e aos valores que passaram a ditar a sociedade, já prenunciados aliás com o mercantilismo e a burguesia que assistiu, e contribuiu, para a expansão da pintura a óleo como forma de representação do património e de um certo modo de vida daqueles que surgem retratados na arte.
Os vários ensaios deste interessantíssimo livro, escrito de forma escorreita, servem para olhar a arte de uma forma diferente da que tem sido prática, e daí a polémica destes ensaios, além de que se reconhece que o espectador ou observador de hoje não pode percepcionar uma obra de arte do modo como esta subentende o seu visionamento, através de pistas que o próprio pintor espalha pela imagem. Ver artigo
Hubert Selby Jr. viveu entre 1928 e 2004 e nasceu em Brooklyn, cenário do seu romance Última Saída para Brooklyn, também publicado pela Antígona em 2006, que se tornou um livro de culto e instituiu o autor como um ícone da contracultura.
Passado no Bronx nos anos 70, Requiem por um Sonho, obra publicada pela Antígona, é uma descida aos infernos do vício e da mente. Harry, Tirone, Marion e Sara são as quatro personagens entre as quais a narrativa oscila, dando conta num registo torrentoso em que os diálogos e a corrente de consciência das personagens se enovela. No início da narrativa todas as personagens possuem um sonho: Harry e Tirone procuram dinheiro fácil, Marion gostaria de abrir um café-teatro e ter fama como artista, enquanto Sara sonha aparecer na televisão. Sara, a mãe de Harry, é a única personagem que não é viciada em heroína, mas depois de passar os dias inteiros agarrada à televisão, tornando-se perita em deitar um olho sobre aquilo que vai fazendo enquanto o outro olho absorve as imagens em technicolor, muitas vezes de anúncios publicitários, deixa-se levar pelo engano de vir a ser convidada a participar num concurso televisivo, o que a leva a querer emagrecer e a ficar involuntária e ingenuamente viciada em anfetaminas. Seja pela heroína, pela televisão, pela publicidade que tudo promete, pelos comprimidos coloridos que se engolem sem culpa, gradualmente, estes sonhos perdem-se e são destruídos por uma necessidade instintiva de encontrar a próxima dose de esperança através da droga que lhes corre nas veias.
O narrador procura ocultar-se por trás das suas personagens, sem tecer juízos de valor, enquanto constrói este seu quadro dantesco de uma «avassaladora viagem ao lado negro do sonho americano e ao universo junkie».
Leitura densa, pesada, que não deve ser feita de ânimo leve, numa espiral descendente de destruição e aniquilamento de qualquer esperança de sonho, este romance foi adaptado ao cinema em 2000 pelo premiado realizador Darren Aronofsky. Ver artigo
Será finalmente publicada em Portugal no próximo dia 22 de Setembro a obra autobiográfica de Maya Angelou, com tradução de Tânia Ganho e posfácio de Diana V. Almeida Ver artigo
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