Publicado em Janeiro de 2020, pela Relógio d’Água (à semelhança da restante obra da autora), O Atelier de Noite reúne dois contos (ou breves novelas), a acrescentar ao universo muito próprio que tem vindo a construir ao longo das suas intrigantes narrativas.
«Talvez seja o que distingue as boas histórias: começam uma e outra vez, mesmo depois de já termos ido embora.» (p. 14)
O Atelier de Noite e Sete Rosas Vermelhas são as duas histórias que compõem o presente volume e que se interligam subtilmente. A de O Atelier de Noite é narrada por uma protagonista feminina um pouco diferente das vozes usuais, pois gradualmente perceberemos que nos é desvendado o que terá acontecido a Agatha durante os 11 dias em que terá permanecido desaparecida (situação factual). Espalha-se até o rumor de que teria sido assassinada, ou de que teria montado o cenário para que pensassem isso, e quando Agatha reaparece a melhor história a adoptar é a de que terá tido amnésia.
«Eu sonhava ser actriz, pianista profissional. Não escritora (…). E então surgiu a ideia de escrever um romance policial. E aquele horrível homenzinho entrou na minha vida.» (p. 25)
É mais ou menos neste passo da narrativa que o leitor confirma que Agatha é (pode ser?), afinal, a escritora de policiais Agatha Christie, até porque a narrativa por vezes oscila entre a primeira e a terceira pessoa. E da mesma forma que em tempos se tornou (dir-se-ia que involuntariamente) autora de Poirot, Agatha deseja agora recriar-se numa nova personagem: Teresa – ironicamente (ou não) o segundo nome da autora.
Sete Rosas Vermelhas, a segunda história, mais breve, traz ainda ecos da primeira narrativa. Uma jovem, que se casara com um professor mais velho, acalenta também, desde sempre, «o desejo de ir embora, de desaparecer» (p. 79) – e as duas histórias interligam-se de diversas outras formas, a começar pelas várias referências à autora tornada personagem da primeira história.
«Tinha vinte e poucos anos. Vivia num estúdio num sótão. Ia à faculdade de vez em quando. Embora tivesse desistido de ser dançarina, ainda praticava todos os dias.» (p. 70)
Quando começa a receber uns pacotes que a relembram da sua vida anterior, quando ainda pintava. Um livro, um CD, um quadro seu, fotos a preto-e-branco que revelam «um atelier de um pintor de noite» (p. 79), a jovem rende-se ao desejo e desaparece na noite. A vida convencional, sem cor, desta jovem mulher, uma escritora dispersa, que em tempos respondera pelo nome de Dylan, abre-se para um novo mundo: «sentia-se cada vez mais longe do mundo em que vivia, já nem vivia lá, era omo um outro estado de consciência» (p. 79).
Entre um conto e outro, há frases que parecem emitir um lampejo fugaz sobre a prosa da própria autora: «Era isso que queria fazer. Encontrar ligações. Escrever contos que se pareciam com ovos, fechados em si mesmo, que nem ela mesma compreendia.» (p. 90) Ver artigo
Manhã e Noite, de Jon Fosse, publicado pela Cavalo de Ferro, com tradução de Manuel Alberto Vieira, é um pequeno livro, ao jeito de um poema, em que o autor modela a linguagem poética ao sabor do fluxo da consciência, muitas vezes num ritmo binário, feito de dicotomias, como a própria estrutura do título indica.
A velha parteira Anna prepara-se para dar à luz uma criança, o segundo filho de Olai e Marta, depois de vários anos sem ela ter engravidado. Estavam já conformados com a ideia de que não voltariam a ter filhos e gratos pela bênção do nascimento de Magda, que os poupou a uma vida triste e solitária na ilha de Holmen onde vivem, na casa que o próprio Olai construiu.
Enquanto Anna tenta enxotar Olai, pois da mesma forma que o barco não é lugar para mulheres, a presença de um homem num parto traz má sorte, este diz à parteira que será um menino, desta vez, e chamar-se-á Johannes como o avô e será pescador como o pai…
«e agora ele virá, enquanto Marta a mãe grita de dor, ele virá ao mundo frio e aí ficará só, separado de Marta, separado de todos, aí ficará só sempre só e mais tarde, quando tudo terminar, quando a hora dele chegar , desvanecer-se-á e tornará a ser nada e regressará ao lugar de onde veio, do nada para o nada, é esse o trajecto da vida, das pessoas, dos animais, das aves, dos peixes, das casas, dos barcos, de tudo quanto existe, é, pensa Olai» (p. 14)
Manhã e Noite é um tratado sobre a fugacidade da vida humana, pois conforme Olai está apreensivo com o nascimento do filho, não evita, simultaneamente, a percepção de como o ciclo natural da vida é efémero, pontuado sobretudo por momentos próximos do divino, como o nascimento, na manhã da vida, e a morte, na noite do dia. Tanto que já na segunda parte do livro, logo na página 27, encontramos um Johannes, agora idoso e viúvo, que nos dá conta da sua vida em retrospectiva. E o leitor, mais depressa do que Johannes, conforme se sucedem alguns episódios surreais, aperceber-se-á de que o seu mundo quotidiano tem algo de diferente: «pensa em como de certo modo tudo mudou, como as coisas, a casa, parecem de certo modo diferentes, mais pesadas e mais leves, como se houvesse mais de terra e mais de céu nas casas» (p. 40)
Jon Fosse, autor multipremiado, com destaque para o Prémio Internacional Ibsen, o Prémio Europeu de Literatura e o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico, é um dos mais importantes e celebrados autores vivos. Nasceu em 1959, em Strandebarm, no Oeste da Noruega, e vive atualmente numa residência honorária situada nas propriedades do Palácio Real de Oslo. A sua extensa obra, traduzida em mais de quarenta línguas, inclui romance, teatro, poesia, livros para crianças e ensaio. Ver artigo
A Dança da Água, publicado pela Cultura Editora, é o muito aguardado romance de estreia de Ta-Nehisi Coates, autor sobejamente conhecido, todavia, pelo seu Entre mim e o mundo, publicado em 2016 pela Editora Ítaca (com tradução de Isabel Castro Silva) e vencedor do National Book Award.
A Dança da Água é um romance excepcional, publicado no original o ano passado, mas estranhamente parece ter passado despercebido
Hiram Walker (Hi) nasceu escravo, numa plantação de tabaco na Virgínia. Mas o jovem Hi não é igual aos outros escravos negros, a começar pelo facto de ele não ser negro mas sim mestiço, filho de pai branco, que é também o seu dono. Quando a mãe de Hi foi vendida, porque inevitavelmente todos os negros serão vendidos e separados da sua família, Hiram perde qualquer memória dela. Contudo, paradoxalmente, Hi revela uma memória prodigiosa, dom que se revelará uma fonte de entretenimento para os brancos. Será depois educado pelo mesmo perceptor que o seu meio-irmão branco, Maynard, a quem o pai reconhece não ter as mesmas capacidades de Hiram, pelo que cedo compreende que deve prepará-lo para ser o mordomo (ou na verdade um mentor) de Maynard. E, num certo dia, é-lhe revelado um misterioso poder que lhe salva a vida ao quase afogar-se num rio. Esse encontro com a morte desperta-lhe ainda a vontade urgente de fugir e libertar-se da escravidão. Porque esse poder é, afinal, inseparável do desejo de liberdade: a condução das almas. Os seus dotes aliados ao conhecimento das letras que entretanto adquire, entre o perceptor e a biblioteca do pai, revelar-se-ão essenciais ao seu trabalho como condutor daqueles que desejam fugir e viverem como homens livres no Norte, onde a escravidão era já condenada. Entretanto, ao longo da narrativa, a terra de abundância que era o Sul vai perdendo, curiosamente, o fulgor da terra vermelha. Explorada e seca, até se tornar árida, as plantações da Virgínia vão morrendo e os patrões terão de ir vendendo os seus escravos, a única fonte de riqueza que lhes resta.
Um dos livros mais aclamados sobre o racismo e a luta pela liberdade de um autor reputado, que aborda uma temática já tocada por Colson Whitehead em A Estrada Subterrânea – onde se materializava a metáfora do Underground imaginando linhas férreas subterrâneas –, que vai ainda mais longe, numa narrativa prodigiosa e original a que não falta magia – magia essa que não nos compete desvelar antes que leia este belíssimo livro. Ver artigo
Os Tempos do Ódio, de Rosa Montero, publicado pela Porto Editora, é o último volume de uma trilogia (Lágrimas na Chuva e O Peso no Coração). É um romance intenso e certamente corajoso, no mínimo desconcertante para quem conhece Rosa Montero por A Louca da Casa em que a autora cria um futuro possível para o mundo em que vivemos. Trata-se de uma narrativa que ingressa nas potencialidades da ficção científica, e não o faz recorrendo a fantasia ou a indefinição acrónica, mas sim com base em todo um universo cuidadosamente imaginado pela autora, e que de alguma forma já tem sido premonitório de eventos entretanto ocorridos – após publicação dos primeiros 2 volumes da trilogia, conforme a própria autora nos explica na sua nota final: «Digo sempre que os romances de Bruna Husky são os mais realistas que já escrevi. De facto, são de um realismo um pouco inquietante, porque às vezes sinto que a atualidade vai confirmando as minhas invenções.» (p. 310)
Bruna Husky é uma rep tecno-humana de combate, isto é, uma andróide, um ser orgânico, mas hipermanipulado por engenheiros genéticos. Quase humana, são clones que amadurecem aceleradamente e que em 14 meses atingem os 25 anos de idade, mas com um prazo de validade curto, pois vivem apenas por 10 anos ao que depois “morrem” em agonia durante 2 semanas. Bruna Husky é independente, individualista, destemida, e tem uma intuição que raia o sobrenatural – uma espécie de sexto sentido hiperhumano. Contudo tem também um grande coração, ainda que o tente dissimular – e conforme nos embrenhamos na narrativa a nossa heroína híbrida tornar-se-á cada vez mais humana, capaz de experienciar ódio, ciúme e amor. Ou não fosse Bruna Husky proveniente do material genético de uma escritora e jornalista de há cem anos, chamada Rosa Montero…
O livro tanto lança uma ponte para um futuro possível, daqui a cem anos, como recupera factos históricos de um passado mais remoto, cheio de dados reais, das trivialidades à antiga paixão do homem pela criação de autómatos, passando pela Ordem de Rosa-Cruz.
Os Tempos do Ódio pode desencorajar aqueles que não apreciem particularmente ficção científica, mas este livro é também um thriller policial, num mundo em crise, à beira de uma guerra mundial interplanetária, onde tudo depende da tecnologia. É uma leitura intensa e emocionante (devorei-o num único dia), onde não deixam de estar presentes os principais temas da escrita de Rosa Montero: a efemeridade da vida, a passagem do tempo, a paixão como superação da morte, o amor ao próximo como caminho para uma vida plena, a luta contra o poder e a injustiça social.
A autora nasceu em Madrid, em 1951. Como jornalista, colabora em exclusivo com o jornal El País, tendo obtido, em 1980, o Prémio Nacional de Jornalismo e, em 2005, o Prémio da Associação da Imprensa de Madrid, por toda a sua vida profissional. Com A Louca da Casa recebeu o Prémio Grinzane Cavour de Literatura Estrangeira e o Prémio Qué Leer para o melhor livro espanhol, distinção que também foi atribuída, em 2006, a História do Rei Transparente. Recebeu, em 2017, o Prémio Nacional das Letras Espanholas pelo conjunto da sua obra. Ver artigo
Há 90 anos, na manhã deste exacto dia 8 de dezembro, no ano de 1930, Florbela Espanca suicidou-se. Era o dia do seu aniversário e foi a data do seu primeiro casamento. Faria 36 anos.
Ana Cristina Silva, no romance biográfico Bela, publicado pela Bertrand Editora, reconstitui a vida da poeta (Florbela não gostaria que lhe chamemos poetisa) que não viveu para saber que o seu nome entraria no cânone literário português e que ainda hoje se lêem os seus poemas. A primeira edição deste romance tem quinze anos e foi profundamente reescrita. Bela não é, contudo, a elegia que se esperaria.
A narrativa é construída numa dicotomia irreconciliável, entre os interlúdios que dão conta das memórias de Bela narradas além-túmulo, e os vários capítulos, sem nome, mas sempre com indicação de local e data, em que um narrador omnisciente dá conta das emoções e sentimentos das várias personagens cujas vidas foram tocadas por Bela, a quem raramente perspectivam a uma luz favorecedora. Cabe ao leitor discernir e escolher o retrato que deseja compor de Florbela, força da natureza capaz de provocar grandes ódios e intensas paixões. Na primeira parte, conforme se narra os momentos precedentes do seu suicídio, o tom é mais soturno, quase melodramático, como convém ao esquisso de uma vida incompreendida e apaixonada ao ponto de perseguir paixões, mesmo quando sabe que são quimeras – Bela casou-se três vezes, foi sempre infeliz com os seus maridos, e dir-nos-á que apenas conheceu verdadeiramente o amor na figura de Apeles, irmão que, quase certamente, também se suicidou. É a partir do terceiro capítulo que Ana Cristina Silva se expande na sua pujança narrativa, onde a partir de fragmentos e de meias-verdades constrói uma história arrebatadora: a de um triângulo amoroso entre João Espanca que além de trair a mulher, Mariana, com a sua amante Antónia, tem a desfaçatez de lhe pedir que crie a sua filha. Note-se que a história dos amores e desamores de Espanca-Pai dura da página 25 à 88 (quando ele literalmente sai e bate com a porta), correspondendo a quase metade do romance.
A história da infância sofrida de Bela, dos maus tratos de uma mãe (que nunca compreende se é madrinha ou madrasta) à inconstância amorosa do pai que nunca a legitimou, pode aliás ser a chave da compreensão para o comportamento de Bela. Muito pouco convencional, ousada ao ponto de sair à rua vestida de homem e não só se divorcia duas vezes, como casa ainda uma terceira vez. Faz dos seus excessos (e os da sua poesia) uma revolta contra a rejeição (p. 74), sem se deixar regrar pelos moralismos próprios de um Portugal na viragem do século XX, num tempo em que a poesia escrita por mulheres era uma ocupação ao nível dos bordados. Um dos seus maridos, médico, recomenda-lhe, aliás, «descansar a cabeça das neuroses» e «não escrever tanto, de modo a não ser vítima de perturbações nervosas» (p. 156).
«Onde é que alguma vez se vira uma mulher ir estudar para a universidade? Ainda por cima, Letras! Era suposto, acrescentou, que a poesia fosse um passatempo tão assisado como bordar ou tocar piano e não dar origem a disparates que comportavam despesas. Era obrigação de um marido enfiar algum juízo na cabecinha de vento de sua mulher em vez de alimentar os seus caprichos. (p. 115)
Ana Cristina Silva é professora no Instituto Superior de Psicologia Aplicada na área de Aquisições Precoces da Linguagem Escrita, Ortografia e Produção Textual. Autora de 15 romances e de um livro de contos, venceu o Prémio Fernando Namora em 2017 com o romance A Noite Não é Eterna. Recebeu o prémio Urbano Tavares Rodrigues pelo romance O Rei do Monte Brasil. Ver artigo
Rapariga, Mulher, Outra, de Bernardine Evaristo, publicado pela Elsinore, concretiza verdadeiramente o significado de romance polifónico. As 12 personagens deste romance a várias vozes apenas têm em comum serem mulheres (excepto Mogan que se definirá como não-binária), quase todas negras, a viver no Reino Unido, geralmente lésbicas. Poder-se-ia até procurar eleger como protagonista Amma, a dramaturga cujo trabalho artístico frequentemente explora a sua identidade lésbica negra, até porque é em torno da noite de estreia da sua peça que muitas destas histórias se interligam, quando algumas destas 12 mulheres se reencontram.
Cada capítulo subdivide-se, em torno de um eixo que congrega várias vozes que ressoam entre si (por exemplo, no Capítulo Um, temos 3 partes constituídas pela voz de Amma, a sua filha Yazz, e Dominique, a melhor amiga). A voz narrativa está na 3.ª pessoa, todavia consegue fazer o leitor beber da perspectiva de cada uma das personagens, que representam mulheres muito díspares entre si, do mais convencional ao mais rebelde, da típica dona de casa branca de subúrbio à empregada de limpeza nigeriana que não esquece as suas raízes.
E ao contar a história de cada uma delas, a autora dá vida a uma voz credível, onde conflui o dialecto (Bummi), o sociolecto (LaTisha), e a linguagem tecnológica dos dias que correm, coloridamente plasmados nas redes sociais (Megan/Morgan). Ao que acresce, nesta vasta tapeçaria, a forma como a história das personagens atravessa, por vezes, todo o século XX, dando conta, muito particularmente, do longo e sofrido percurso do que significa ser uma mulher de cor num mundo que silencia a diferença. A pujança da narrativa conduz a uma leitura vertiginosa, sem que o leitor se perca na torrente de histórias, magistralmente fluída, capaz de uma total identificação com cada uma destas mulheres, mesmo quando páginas depois lemos com que olhos é que as outras mulheres, que em torno dela gravitam, a vêem. Um retrato que se pensaria impossível do principal legado do império colonial britânico… Uma realidade multicultural e multifacetada, muito actual e vívida, fortemente assente no colonialismo, na imigração e na diáspora, em que todas as categorias e tentativas de compartimentação são sempre fluídas – um pouco ao jeito da sexualidade destas mulheres que se redescobrem, muitas vezes, ao amar uma mulher amiga.
Um romance imperdível, impossível de pousar, que repensa com humor e quase imperceptível ironia todas as noções possíveis de identidade, género e classe. Como quando uma das poucas mulheres brancas com voz neste romance descobre que afinal tem África no seu ADN: «deitada na cama, imaginou os seus antepassados de panos a cobrir-lhes as partes, a correr pelas savanas de África e a caçar leões com lanças – mas a fazê-lo de quipá na cabeça, depois a comer “sanduíches à dinamarquesa” e paelha e a recusarem-se a caçar no sabbat» (p. 465)
Bernardine Evaristo nasceu no sudeste de Londres, em 1959, filha de mãe britânica e pai nigeriano. Autora de uma obra que versa os mais diversos géneros – romance, poesia, contos, teatro e crítica literária –, a sua escrita é caracterizada pela experimentação, ousadia e subversão. Rapariga, Mulher, Outra foi, ex-aequo com Os Testamentos (Bertrand Editora), de Margaret Atwood, o vencedor do Booker Prize 2019, recebeu a distinção de Livro do Ano e Autor do Ano do British Book Awards 2020. Foi ainda finalista do Women’s Prize de ficção 2020 e do Orwell Prize de ficção política 2020. Ver artigo
Madeline Miller regressa aos mitos clássicos em Circe, publicado pela Minotauro. Não fosse o anterior sucesso de O Canto de Aquiles (publicado pela Bertrand Editora e vencedor do Orange Prize) e ter sabido deste livro numa entrevista a Juliet Marillier (publicada no Cultura.Sul), provavelmente também me teria passado despercebido.
Circe é filha de uma ninfa e do Deus-Sol Hélio, o mais poderoso dos titãs, capaz de destronar Zeus. Não possui a beleza da mãe nem o brilho do pai, e sente-se deslocada mesmo entre os seus irmãos. Considerada feia, com os seus olhos amarelos e a sua voz incómoda, «guinchenta como a de um mocho» (p. 15), porque é afinal a voz dos mortais, procura calor junto do pai e cedo sente atracção pela fragilidade dos humanos.
«Pensei que era assim que os mortais encontravam a fama. Através da prática e da diligência, tratando das suas competências como de jardins até florescerem sob o sol. Mas os deuses nasceram para o icor e o néctar, pois as excelências irrompiam sem esforço das pontas dos seus dedos. Assim, encontravam a fama provando que conseguiam causar danos: destruindo cidades, começando guerras, criando pragas e monstros. Todo aquele fumo e sacrifícios delicadamente oferecidos nos nossos altares. Só deixam cinzas atrás de si.» (p. 152)
Conforme descobre acidentalmente possuir capacidades fantásticas, capaz de transformar um comum mortal num Deus, ou a ninfa Cila num monstro marinho temível, Circe torna-se receada pelos próprios deuses, e é confinada na ilha de Ea, onde irá apurando os seus dotes.
«Deixem que diga o que a feitiçaria não é: não é um poder divino que se exerce com um pensamento e um piscar de olhos. A feitiçaria tem de ser feita e trabalhada, planeada e procurada, desenterrada, secada, partida e moída, cozinhada, falada e cantada. E mesmo depois de tudo isso pode falhar, ao contrário dos deuses. Se as minhas ervas não forem suficientemente frescas, se a minha atenção se dispersar, se a minha vontade for fraca, as poções ficam estragadas e rançosas nas minhas mãos.» (p. 95 – 96)
Madeline Miller narra prodigiosamente esta efabulação cheia da maravilha dos mitos ao mesmo tempo que humaniza as personagens, capaz de prender o leitor da primeira à última página, especialmente quando por elas vão desfilando personagens da mitologia sobejamente conhecidas, mas aqui recriadas e relacionadas de modo inédito. Sabemos que Circe transformava marinheiros de Ulisses em porcos, que se envolveu amorosamente com Ulisses, mas é-nos ainda revelado como Circe conhece o inventivo Dédalo e o seu filho Ícaro, como ajudou Medeia e Jasão do velo de ouro, como assiste ao parto do abominável Minotauro, no mesmo dia em que conhece Ariadne ainda criança, e como depois da morte de Ulisses acolhe Telémaco e Penélope.
«Raiva e dor, desejo perverso, luxúria, autocomiseração: estas são emoções que os deuses conhecem bem. Mas culpa, vergonha, remorso e ambivalência são territórios estranhos à nossa espécie, que têm de ser cartografados pedra a pedra.» (p. 176 – 177)
Circe nasce neste livro despida do mal e da perfídia, imbuída de uma natureza profundamente feminina (e feminista), revelando-se sobretudo como uma mulher perdida no limbo que medeia a humanidade e a imortalidade, terrivelmente consciente de todos os seus actos, enquanto sente os séculos se escoarem como dias, e os seus dotes mágicos de metamorfose são-nos revelados, afinal, como um acto de autodefesa – não é, afinal, por mero acaso, que esta feiticeira transformará os homens que chegam à sua ilha, cobiçosos e violentos, justamente em porcos.
«Chamava-se noivas às ninfas, mas não era verdadeiramente assim que o mundo nos via. Éramos um banquete infinito posto na mesa, belo e sempre a renovar-se. E tão más a fugir.» (p. 220)
Madeline Miller cresceu em Nova Iorque e em Filadélfia. Frequentou a Brown University, onde obteve o grau de Master of Arts em Estudos Clássicos. Ver artigo
«Aos domingos à tarde, quando o céu está azul e a brisa agita suavemente as árvores, a menina senta-se no chão do seu quarto e dobra folhas de papel. Faz aviões. (…)
O destino que a menina lhes atribui é o de ficarem caídos no passeio até que alguém passe e repare neles.» (p. 7)
A menina alimenta uma ideia. Imagina que o avião possa ser sempre atirado, pelas várias pessoas que o encontrem, para que nesses voos sucessivos possa percorrer o mundo…
Aviões de Papel, de Paulo Kellerman, publicado pela Editora Minimalista, é um livro diferente. Nele vibra um objecto volátil, delicado, «coisa de outro mundo, de outro tempo» (p. 76), que voa entre os vários breves capítulos da narrativa, interligando histórias díspares e personagens desencontradas que, nesse precioso instante, conseguem suspender-se no tempo, ao encontrar num avião de papel caído aos seus pés uma ligação ao mundo, um passaporte para a felicidade.
«Pessoas sempre apressadas, como se estivessem a fugir ao tempo; ou a persegui-lo, para o tentar capturar e guardar dentro dos seus relógios.» (p. 7)
Da professora ao pai que é homem do lixo, do médico suicida ao avô que ensina um menino que não é o seu neto como lançar um aviãozinho de papel, esta galeria de personagens que abundam em interrogações e perplexidades até que, ao deparar-se com um avião de papel caído na rua, se libertam por momentos, descobrindo-se capazes de manter o espanto perante a vida e de se reencontrarem num gesto simples da sua infância: o de libertar aviões de papel como quem bate asas. E ao observar o voo que o avião descreve, permitem-se libertar, ainda que seja apenas nesses breves instantes que o leitor testemunha, do seu questionamento constante, das suas mágoas e sonhos frustrados, e gozar o efémero momento em que, ao segurar um avião de papel que uma menina um dia criou e onde rabiscou uma frase, reencontram a sua infância perdida, na pureza e simplicidade de quem não pretende saber nada. Ver artigo
Depois do seu primeiro romance, Meio homem metade baleia (2018), finalista do Prémio Oceanos, chegou em fevereiro às livrarias A melhor máquina viva, o novo romance de José Gardeazabal, com o selo da Companhia das Letras, mas no contexto pandémico que então se vivia tem passado bastante despercebido. Este seu segundo romance é também o primeiro volume da Trilogia dos Pares. A título de curiosidade, José Gardeazabal é o pseudónimo de José Tavares, e o autor é irmão de Gonçalo M. Tavares.
Um livro difícil, romance muito pouco convencional, onde conflui (fazendo eco das palavras da crítica de José Riço Direitinho ao seu anterior livro) um discurso político, alegórico e aforístico, conforme passa em revista a história e memória do século XX, do Holocausto ao 11 de setembro, ao mesmo tempo que parodia o discurso bíblico, como quando compara a queda das Twin Towers à queda da Torre de Babel:
«Aconteceu uma segunda queda. Porquê uma segunda queda, não bastou a primeira? Aquele chão seco de paraíso, aquele enjoo de dilúvio. Protegidas por uma poeira cinzenta e fina, as pessoas mascararam-se de desconhecidas, de palhaço, na certeza de este ser um susto novo. Aprenderam rapidamente a respirar lentamente, invocando ao telefone uma salvação impessoal. Ninguém os ouviu. Estavam entre a realidade e a verdade, e a realidade ganhava. A realidade ferro, cimento e vidro transparente, a realidade simultânea de dois desastres, tão improváveis como uma má aposta. Deuses distraídos tinham jogado aos dados e o nosso deus tinha perdido.» (p. 129-130)
Na prosa perpassa ainda a noção da metaliteratura ou da metaficcionalidade, pois a escrita pensa-se a si mesma conforme se plasma no papel, num jogo com a linguagem, onde entram aforismos e, muito especialmente, títulos de livros que nos servem de referências culturais no labirinto em que a história se pode tornar.
Anders Kopf é um jovem aspirante a escritor que decide mergulhar na pobreza por um ano e afastar-se de um passado doloroso. Toma essa decisão no dia seguinte a uma tragédia familiar mas adia por uns tempos a sua execução, enquanto passa por um orfanato. Nesse seu intento de se tornar pobre o protagonista parece evocar os grandes autores russos (lembremo-nos tão somente de Crime e Castigo), numa fuga ao capitalismo e excessos da literatura norte-americana. Nesse exercício temporário da fome e do despojamento Kopf aspira a melhorar a literatura – a «ciência dos pobres» (p. 36) – pelo que faz um batismo de pobreza – «pobreza é reflexão» (p. 197): «abandonará pão, paz, saúde, habitação. Vestuário.» (p. 35)
Em torno de si, reúne 3 pobres a quem se atribui nomes esclarecedores: Prejworski, o Subjetivo; o antiamericano Gilles; cidadão Elias Kane, um «negro enorme, de literatura», de cinema. Com esses novos companheiros acabará por cometer um roubo num matadouro –que aqui representa um símbolo do tempo histórico do século XX e, muito particularmente, do capitalismo –, mas aquilo que rouba será essencialmente quantidades astronómicas de papel branco.
Mas o projecto de Kopf, o de ser pobre para poder alimentar-se da escrita, pode vir a ser gorado quando Eeva Wiseman, a bela capitalista herdeira do matadouro, decide, na ressaca de um acidente, que quer ser amiga de um pobre.
O autor nasceu em Lisboa, onde vive actualmente. Viveu, trabalhou e estudou em Luanda, Aveiro, Boston e Los Angeles. O seu livro de poesia, história do século vinte, distinguido com o Prémio INCM/Vasco Graça Moura, foi editado em 2016, ano em que publicou também Dicionário de ideias feitas em literatura, colectânea de prosa curta escrita em 176 entradas, uma espécie de dicionário. Em 2017, editou três peças de teatro, reunidas na obra Trilogia do olhar. Ver artigo
A Alma Perdida, publicado pela Fábula, é um álbum ilustrado com texto de Olga Tokarczuk, vencedora do Prémio Nobel de Literatura em 2019, e ilustrações da premiada artista polaca Joanna Concejo, distinguido com uma Menção Especial do Bologna Ragazzi Award e Livro do Ano pelo IBBY (2013).
«Se alguém pudesse olhar para nós lá do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas que correm apressadas, transpiradas e muito cansadas, e que atrás delas correm, atrasadas, as suas almas perdidas…»
Pelo tema versado e pelas ilustrações sombrias, não se confunda este belíssimo livro de capa dura, com 48 páginas, com uma obra infantil ou um breve conto. O texto é mais breve do que a história contada pelas imagens, que ganham cor perto do final, conforme o próprio Jan recupera o que perdeu algures pelo caminho ao largo da vida.
«Sem alma, vivia até muito bem — dormia, comia, trabalhava, conduzia o automóvel e até jogava ténis. Às vezes, porém, tinha a impressão de que, em seu redor, tudo era plano; parecia-lhe que se deslocava sobre uma folha lisa de papel de um caderno de matemática, folha essa toda ela coberta de quadrados iguaizinhos.»
É também sobre essas folhas quadriculadas de um caderno de matemática que Joanna Concejo assenta as suas ilustrações, até que a cor irrompe pelas páginas do álbum e se apodera de todo o espaço livre, da mesma forma que do tempo parado nos relógios enterrados por Jan vieram a nascer «belas flores, semelhantes a campânulas de várias cores».
A filosofia (espiritualidade?) de Olga Tokarczuk e a melancolia das imagens interligam-se harmoniosamente, com pistas subtis (será a alma de Jan aquela criança que surge aqui e ali?) que irrompem de recantos esquivos de página para página e reclamam a atenção plena do leitor, a sua própria paragem no tempo para se conseguir maravilhar com uma história. Ver artigo
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