Em 1768 uma expedição deixou a Inglaterra sob o comando do capitão James Cook e regressou em 1771, depois de fazer o reconhecimento de várias ilhas do Pacífico e visitar a Austrália e a Nova Zelândia. Nos cem anos subsequentes, as terras mais férteis foram retiradas aos seus ocupantes, os aborígenes na Austrália e os maoris na Nova Zelândia, cuja população decresceu em 90 % e foram racialmente discriminados. Na Tasmânia, os nativos depois de viverem 10.000 anos em isolamento, foram completamente exterminados. Não sobrou ninguém. Mesmo depois de mortos, os seus corpos foram profanados e estudados por antropólogos e curadores de museus.
Neste magnífico novo romance, publicado pela Sextante, talvez um dos melhores da carreira de Peter Carey, autor nascido na Austrália que vive actualmente em Nova Iorque, duas vezes premiado com o Booker Prize, a intriga remonta a 1954, depois da Segunda Guerra Mundial portanto. Em capítulos alternados na primeira pessoa, entre Irene Bobs, a mulher de Titch, o melhor vendedor de carros do sudoeste da Austrália, e Willie Bachhuber, um jovem alemão, louro e bonito de 26 anos, em fuga à justiça, um mestre-escola suspenso, rato de biblioteca e vencedor (sem prémio) de um conhecido concurso radiofónico de cultura geral, o autor faz uma longa circunvolução na primeira parte do romance, isto é, em 160 páginas, o que constitui quase metade do livro. Percebemos, gradualmente, e conforme as personagens vão sendo despidas e reveladas na sua densidade psicológica, que a narrativa nos prepara para a eminente viagem em torno da Austrália, pois Titch quer a todo o custo entrar na Prova Redex Trial, ao ponto de convencer a mulher a juntar-se-lhe, para o poder controlar neste seu arroubo, se bem que ela própria percebe de carros e é boa condutora. E é também imediatamente antes da narração da viagem, uma corrida em volta do continente australiano à velocidade de 50 milhas por horas a que poucos carros sobrevivem, ficando atravessados na paisagem inóspita como carcaças, que percebemos afinal o segredo que Willie guarda. Note-se quando logo no início do romance ele se apresenta a Irene Bobs, sua vizinha: «Eu sou Willie Bachhuber, disse eu, porque a guerra tinha terminado há menos de dez anos e era melhor arrumar logo com a questão alemã.» (p. 20) Mas não é esse o segredo do nosso Willie, um jovem que fugiu à mulher e aos pais, a partir do momento em que o médico num esgar lhe mostra o filho, que nasceu negro e de cabelo preto.
Na última parte do romance, que se chama justamente «Uma bifurcação na estrada», temos 140 páginas de desfecho, em que a prova Redex – que primeiro serviu para apresentar o continente na sua magnitude e nos seus perigos, assim como o seu tecido social complexo e racista – é quase esquecida, conforme o romance dá uma guinada súbita para algo que foi sendo indiciado muito subtilmente, e apanha todos de surpresa, o leitor e a própria personagem que desconhecia as suas verdadeiras origens. Há pistas, naturalmente, como quando Irene Bobs encontra a caveira de uma criança na terra e tenta entregá-la às autoridades.
O narrador declarou em entrevista que há muito tempo que evitava abordar o tema do racismo, pois achava que não era essa a função de um escritor branco, mas neste seu décimo quarto romance, e o mais ousado, percebeu que não podia continuar a fugir à evidência de ser um escritor australiano branco beneficiário de um genocídio.
O final do romance tem alguma coisa de mito, e o próprio título ganha um sentido que vai além da corrida Redex, na forma como depois de descobrir a sua verdadeira origem étnica, aparentemente óbvia para todos os outros com que se confrontava, um mestiço (que se julgava branco) que em criança foi levado por uma águia passa a viver como um aborígene, enquanto procura preservar o legado cultural desse povo em extinção, a «registar a verdade e manter o segredo» (p. 396) e educar a geração mais nova de puros nativos.
«O meu pai pode ter sido, como tantos deram a entender, um bem-intencionado antropólogo amador abelhudo, mas era também um homem instruído e muito culto, um intelectual cuja alma tinha sido seriamente deformada devido à prática de limpeza étnica do seu país.» (p. 391)

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Paulo Nóbrega Serra
Written by Paulo Nóbrega Serra
Sou doutorado em Literatura com a tese «O realismo mágico na obra de Lídia Jorge, João de Melo e Hélia Correia», defendida em Junho de 2013. Mestre em Literatura Comparada e Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, autor da obra O Realismo Mágico na Literatura Portuguesa: O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge e O Meu Mundo Não É Deste Reino, de João de Melo, fruto da minha tese de mestrado. Tenho ainda três pequenas biografias publicadas na colecção Chamo-me: Agostinho da Silva, Eugénio de Andrade e D. Dinis. Colaboro com o suplemento Cultura.Sul e com o Postal do Algarve (distribuídos com o Expresso no Algarve e disponíveis online), e tenho publicado vários artigos e capítulos na área dos estudos literários. Trabalhei como professor do ensino público de 2003 a 2013 e ministrei formações. De Agosto de 2014 a Setembro de 2017, fui Docente do Instituto Camões em Gaborone na Universidade do Botsuana e na SADC, sendo o responsável pelo Departamento de Português da Universidade e ministrei cursos livres de língua portuguesa a adultos. Realizei um Mestrado em Ensino do Português e das Línguas Clássicas e uma pós-graduação em Ensino Especial. Vivi entre 2017 e Janeiro de 2020 na cidade da Beira, Moçambique, onde coordenei o Centro Cultural Português, do Camões, dois Centros de Língua Portuguesa, nas Universidades da Beira e de Quelimane. Fui docente na Universidade Pedagógica da Beira, onde leccionava Didáctica do Português a futuros professores. Resido agora em Díli, onde trabalho como Agente de Cooperação e lecciono na UNTL disciplinas como Leitura Orientada e Didáctica da Literatura. Ler é a minha vida e espero continuar a espalhar as chamas desta paixão entre os leitores amigos que por aqui passam.