O livro recentemente lançado de Teolinda Gersão, O regresso de Júlia Mann a Paraty, autora publicada pela Porto Editora, celebra os seus 40 anos de vida literária, em simultâneo com a publicação da 7.ª edição da colectânea de contos A mulher que prendeu a chuva e outras histórias.
Este pequeno grande livro compõe-se de três novelas que se entrecruzam, de modo surpreendente, e que parecem ressoar o período em que Teolinda Gersão foi leitora de português na Universidade Técnica de Berlim (a autora viveu três anos na Alemanha), e professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada.
(…)
O virtuosismo na arte da novela de O regresso de Júlia Mann a Paraty reside sobretudo na forma como assenta em cartas, diálogos mudos que se estabelecem com interlocutores ausentes, como Mann que escreve a Freud em pensamento e vice-versa, ou na forma como Júlia escreve mentalmente ao pai cartas nunca enviadas. Virtuosismo narrativo que culmina num volte-face, presente e insinuado, mas revelado apenas no final. Ver artigo
Zalatune, o mais recente livro de Nuno Gomes Garcia, publicado em Janeiro deste ano pela Manuscrito (Grupo Editorial Presença), é um thriller de fôlego capaz de prender o leitor mais renitente – pois é certo que nos dias que correm nem sempre é fácil termos a concentração necessária à leitura.
Apesar de correr o ano não muito distante de 2034, e de o cenário ser Ínsula, ilha insulada algures no Mediterrâneo, de onde se avista por vezes o continente meridional, há diversos pontos de ligação com a actualidade que tornam este livro menos uma distopia do que um mundo possível terrivelmente próximo: Ínsula foi o único país do planeta a sobreviver a uma pandemia em 2029 que dizimou os mais velhos; a ilha confinou-se ao mundo assim que se percebeu que o povo era imune; a procriação é uma missão patriótica e as relações homossexuais são crime; reinstaurou-se a pena capital; os estrangeiros que vêm do Sul são inimigos; os refugiados que conseguem aportar à ilha (sem serem exterminados no mar) são colocados em «campos de acolhimento» quando, na verdade, se preparam para serem tomados como escravos em troca do acolhimento prestado; o Primeiro-Ministro governa numa espécie de Big Brother, em que toda a sua vida é filmada; cada decisão política que urge é tomada pela população com base num referendo; a Internet foi substituída por uma Intranet; prepara-se, por fim, a construção de um muro protector que proteja a ilha de novas invasões.
Ínsula configura assim uma espécie de alegoria de tudo o que vai mal no mundo: «Se Deus não estivesse morto e enterrado, dir-se-ia sermos o povo eleito.» (p. 198)
A narrativa é construída de modo bastante cinematográfico, com algumas personagens centrais, cuja vida nos vai sendo desvelada em analepses que alternam com o ritmo da acção que se torna cada vez mais tenso, até que, a partir de metade do livro, o mistério adensa-se ainda mais quando a ilha começa a sacudir-se e um a um os habitantes da ilha começam a desaparecer, volatilizando-se no ar, o que relembraria a trama da série The Leftovers (HBO), não fosse o facto de cada uma destas pessoas parecer partir num acto consciente e de vontade plena, deixando antes um bilhete: «Parti para Zalatune».
Nuno Gomes Garcia nasceu em Matosinhos em 1978, estudou História e foi arqueólogo. Vive em Paris, onde é consultor editorial e divulgador da literatura lusófona na rádio e na imprensa escrita. Ver artigo
Publicado muito recentemente, há alguns dias, pela Relógio d’Água, Os Perseguidores, de Ana Teresa Pereira, reúne três breves narrativas aparentemente díspares. A uni-las, entre outros temas que trataremos adiante, temos a imagem do pássaro, animal quase sempre imbuído de algo sinistro.
A primeira história, «A Firefly Hour», conheceu duas versões anteriores publicadas em As Velas da Noite e A Cidade Fantasma.
A protagonista é uma jovem de 22 anos, que escreve histórias policiais, contos para revistas pulp, e em tempos publicou um romance que não vendeu muito mas adorado pela crítica.
«Para mim, era só mais um homem a destacarse do fundo prateado. Aceitei o bilhete azul e rasgueio em dois. Não olhei para o rosto dele; nunca olho para os rostos deles. Fato cinzento, camisa cinzenta. Camisa limpa.» (p. 11)
Assim inicia a história que, em espelho, reflecte as narrativas da autora, e simultaneamente executa uma mise en scène da sua prosa:
«Sentei-me na cama. Ele ajoelhou-se à minha frente.
És tão bonita. Como a rapariga das minhas histórias.
É sempre a mesma?
Tem sempre o mesmo nome.» (p. 19)
«A Lagoa», a segunda narrativa, conta a história de um triângulo amoroso, Tom, April e a narradora. April e ela eram «as meninas da velha casa» (p. 61), quase iguais. A primeira diferença que as pessoas notavam era o cabelo, mas a verdadeira diferença estava «nos olhos: os meus de um azul límpido, os de April mais escuros, quase cinzentos. E nas mãos: as minhas são bonitas e macias, as de April magras e arranhadas, como garras.» (p. 52)
Depois de desaparecida durante 7 anos, na véspera do seu casamento, quando tinha 19 anos, April regressa de súbito e ameaça usurpar o lugar da jovem que se parece com ela. Ver artigo
Publicado em Janeiro de 2020, pela Relógio d’Água (à semelhança da restante obra da autora), O Atelier de Noite reúne dois contos (ou breves novelas), a acrescentar ao universo muito próprio que tem vindo a construir ao longo das suas intrigantes narrativas.
«Talvez seja o que distingue as boas histórias: começam uma e outra vez, mesmo depois de já termos ido embora.» (p. 14)
O Atelier de Noite e Sete Rosas Vermelhas são as duas histórias que compõem o presente volume e que se interligam subtilmente. A de O Atelier de Noite é narrada por uma protagonista feminina um pouco diferente das vozes usuais, pois gradualmente perceberemos que nos é desvendado o que terá acontecido a Agatha durante os 11 dias em que terá permanecido desaparecida (situação factual). Espalha-se até o rumor de que teria sido assassinada, ou de que teria montado o cenário para que pensassem isso, e quando Agatha reaparece a melhor história a adoptar é a de que terá tido amnésia.
«Eu sonhava ser actriz, pianista profissional. Não escritora (…). E então surgiu a ideia de escrever um romance policial. E aquele horrível homenzinho entrou na minha vida.» (p. 25)
É mais ou menos neste passo da narrativa que o leitor confirma que Agatha é (pode ser?), afinal, a escritora de policiais Agatha Christie, até porque a narrativa por vezes oscila entre a primeira e a terceira pessoa. E da mesma forma que em tempos se tornou (dir-se-ia que involuntariamente) autora de Poirot, Agatha deseja agora recriar-se numa nova personagem: Teresa – ironicamente (ou não) o segundo nome da autora.
Sete Rosas Vermelhas, a segunda história, mais breve, traz ainda ecos da primeira narrativa. Uma jovem, que se casara com um professor mais velho, acalenta também, desde sempre, «o desejo de ir embora, de desaparecer» (p. 79) – e as duas histórias interligam-se de diversas outras formas, a começar pelas várias referências à autora tornada personagem da primeira história.
«Tinha vinte e poucos anos. Vivia num estúdio num sótão. Ia à faculdade de vez em quando. Embora tivesse desistido de ser dançarina, ainda praticava todos os dias.» (p. 70)
Quando começa a receber uns pacotes que a relembram da sua vida anterior, quando ainda pintava. Um livro, um CD, um quadro seu, fotos a preto-e-branco que revelam «um atelier de um pintor de noite» (p. 79), a jovem rende-se ao desejo e desaparece na noite. A vida convencional, sem cor, desta jovem mulher, uma escritora dispersa, que em tempos respondera pelo nome de Dylan, abre-se para um novo mundo: «sentia-se cada vez mais longe do mundo em que vivia, já nem vivia lá, era omo um outro estado de consciência» (p. 79).
Entre um conto e outro, há frases que parecem emitir um lampejo fugaz sobre a prosa da própria autora: «Era isso que queria fazer. Encontrar ligações. Escrever contos que se pareciam com ovos, fechados em si mesmo, que nem ela mesma compreendia.» (p. 90) Ver artigo
Há 90 anos, na manhã deste exacto dia 8 de dezembro, no ano de 1930, Florbela Espanca suicidou-se. Era o dia do seu aniversário e foi a data do seu primeiro casamento. Faria 36 anos.
Ana Cristina Silva, no romance biográfico Bela, publicado pela Bertrand Editora, reconstitui a vida da poeta (Florbela não gostaria que lhe chamemos poetisa) que não viveu para saber que o seu nome entraria no cânone literário português e que ainda hoje se lêem os seus poemas. A primeira edição deste romance tem quinze anos e foi profundamente reescrita. Bela não é, contudo, a elegia que se esperaria.
A narrativa é construída numa dicotomia irreconciliável, entre os interlúdios que dão conta das memórias de Bela narradas além-túmulo, e os vários capítulos, sem nome, mas sempre com indicação de local e data, em que um narrador omnisciente dá conta das emoções e sentimentos das várias personagens cujas vidas foram tocadas por Bela, a quem raramente perspectivam a uma luz favorecedora. Cabe ao leitor discernir e escolher o retrato que deseja compor de Florbela, força da natureza capaz de provocar grandes ódios e intensas paixões. Na primeira parte, conforme se narra os momentos precedentes do seu suicídio, o tom é mais soturno, quase melodramático, como convém ao esquisso de uma vida incompreendida e apaixonada ao ponto de perseguir paixões, mesmo quando sabe que são quimeras – Bela casou-se três vezes, foi sempre infeliz com os seus maridos, e dir-nos-á que apenas conheceu verdadeiramente o amor na figura de Apeles, irmão que, quase certamente, também se suicidou. É a partir do terceiro capítulo que Ana Cristina Silva se expande na sua pujança narrativa, onde a partir de fragmentos e de meias-verdades constrói uma história arrebatadora: a de um triângulo amoroso entre João Espanca que além de trair a mulher, Mariana, com a sua amante Antónia, tem a desfaçatez de lhe pedir que crie a sua filha. Note-se que a história dos amores e desamores de Espanca-Pai dura da página 25 à 88 (quando ele literalmente sai e bate com a porta), correspondendo a quase metade do romance.
A história da infância sofrida de Bela, dos maus tratos de uma mãe (que nunca compreende se é madrinha ou madrasta) à inconstância amorosa do pai que nunca a legitimou, pode aliás ser a chave da compreensão para o comportamento de Bela. Muito pouco convencional, ousada ao ponto de sair à rua vestida de homem e não só se divorcia duas vezes, como casa ainda uma terceira vez. Faz dos seus excessos (e os da sua poesia) uma revolta contra a rejeição (p. 74), sem se deixar regrar pelos moralismos próprios de um Portugal na viragem do século XX, num tempo em que a poesia escrita por mulheres era uma ocupação ao nível dos bordados. Um dos seus maridos, médico, recomenda-lhe, aliás, «descansar a cabeça das neuroses» e «não escrever tanto, de modo a não ser vítima de perturbações nervosas» (p. 156).
«Onde é que alguma vez se vira uma mulher ir estudar para a universidade? Ainda por cima, Letras! Era suposto, acrescentou, que a poesia fosse um passatempo tão assisado como bordar ou tocar piano e não dar origem a disparates que comportavam despesas. Era obrigação de um marido enfiar algum juízo na cabecinha de vento de sua mulher em vez de alimentar os seus caprichos. (p. 115)
Ana Cristina Silva é professora no Instituto Superior de Psicologia Aplicada na área de Aquisições Precoces da Linguagem Escrita, Ortografia e Produção Textual. Autora de 15 romances e de um livro de contos, venceu o Prémio Fernando Namora em 2017 com o romance A Noite Não é Eterna. Recebeu o prémio Urbano Tavares Rodrigues pelo romance O Rei do Monte Brasil. Ver artigo
«Aos domingos à tarde, quando o céu está azul e a brisa agita suavemente as árvores, a menina senta-se no chão do seu quarto e dobra folhas de papel. Faz aviões. (…)
O destino que a menina lhes atribui é o de ficarem caídos no passeio até que alguém passe e repare neles.» (p. 7)
A menina alimenta uma ideia. Imagina que o avião possa ser sempre atirado, pelas várias pessoas que o encontrem, para que nesses voos sucessivos possa percorrer o mundo…
Aviões de Papel, de Paulo Kellerman, publicado pela Editora Minimalista, é um livro diferente. Nele vibra um objecto volátil, delicado, «coisa de outro mundo, de outro tempo» (p. 76), que voa entre os vários breves capítulos da narrativa, interligando histórias díspares e personagens desencontradas que, nesse precioso instante, conseguem suspender-se no tempo, ao encontrar num avião de papel caído aos seus pés uma ligação ao mundo, um passaporte para a felicidade.
«Pessoas sempre apressadas, como se estivessem a fugir ao tempo; ou a persegui-lo, para o tentar capturar e guardar dentro dos seus relógios.» (p. 7)
Da professora ao pai que é homem do lixo, do médico suicida ao avô que ensina um menino que não é o seu neto como lançar um aviãozinho de papel, esta galeria de personagens que abundam em interrogações e perplexidades até que, ao deparar-se com um avião de papel caído na rua, se libertam por momentos, descobrindo-se capazes de manter o espanto perante a vida e de se reencontrarem num gesto simples da sua infância: o de libertar aviões de papel como quem bate asas. E ao observar o voo que o avião descreve, permitem-se libertar, ainda que seja apenas nesses breves instantes que o leitor testemunha, do seu questionamento constante, das suas mágoas e sonhos frustrados, e gozar o efémero momento em que, ao segurar um avião de papel que uma menina um dia criou e onde rabiscou uma frase, reencontram a sua infância perdida, na pureza e simplicidade de quem não pretende saber nada. Ver artigo
Depois do seu primeiro romance, Meio homem metade baleia (2018), finalista do Prémio Oceanos, chegou em fevereiro às livrarias A melhor máquina viva, o novo romance de José Gardeazabal, com o selo da Companhia das Letras, mas no contexto pandémico que então se vivia tem passado bastante despercebido. Este seu segundo romance é também o primeiro volume da Trilogia dos Pares. A título de curiosidade, José Gardeazabal é o pseudónimo de José Tavares, e o autor é irmão de Gonçalo M. Tavares.
Um livro difícil, romance muito pouco convencional, onde conflui (fazendo eco das palavras da crítica de José Riço Direitinho ao seu anterior livro) um discurso político, alegórico e aforístico, conforme passa em revista a história e memória do século XX, do Holocausto ao 11 de setembro, ao mesmo tempo que parodia o discurso bíblico, como quando compara a queda das Twin Towers à queda da Torre de Babel:
«Aconteceu uma segunda queda. Porquê uma segunda queda, não bastou a primeira? Aquele chão seco de paraíso, aquele enjoo de dilúvio. Protegidas por uma poeira cinzenta e fina, as pessoas mascararam-se de desconhecidas, de palhaço, na certeza de este ser um susto novo. Aprenderam rapidamente a respirar lentamente, invocando ao telefone uma salvação impessoal. Ninguém os ouviu. Estavam entre a realidade e a verdade, e a realidade ganhava. A realidade ferro, cimento e vidro transparente, a realidade simultânea de dois desastres, tão improváveis como uma má aposta. Deuses distraídos tinham jogado aos dados e o nosso deus tinha perdido.» (p. 129-130)
Na prosa perpassa ainda a noção da metaliteratura ou da metaficcionalidade, pois a escrita pensa-se a si mesma conforme se plasma no papel, num jogo com a linguagem, onde entram aforismos e, muito especialmente, títulos de livros que nos servem de referências culturais no labirinto em que a história se pode tornar.
Anders Kopf é um jovem aspirante a escritor que decide mergulhar na pobreza por um ano e afastar-se de um passado doloroso. Toma essa decisão no dia seguinte a uma tragédia familiar mas adia por uns tempos a sua execução, enquanto passa por um orfanato. Nesse seu intento de se tornar pobre o protagonista parece evocar os grandes autores russos (lembremo-nos tão somente de Crime e Castigo), numa fuga ao capitalismo e excessos da literatura norte-americana. Nesse exercício temporário da fome e do despojamento Kopf aspira a melhorar a literatura – a «ciência dos pobres» (p. 36) – pelo que faz um batismo de pobreza – «pobreza é reflexão» (p. 197): «abandonará pão, paz, saúde, habitação. Vestuário.» (p. 35)
Em torno de si, reúne 3 pobres a quem se atribui nomes esclarecedores: Prejworski, o Subjetivo; o antiamericano Gilles; cidadão Elias Kane, um «negro enorme, de literatura», de cinema. Com esses novos companheiros acabará por cometer um roubo num matadouro –que aqui representa um símbolo do tempo histórico do século XX e, muito particularmente, do capitalismo –, mas aquilo que rouba será essencialmente quantidades astronómicas de papel branco.
Mas o projecto de Kopf, o de ser pobre para poder alimentar-se da escrita, pode vir a ser gorado quando Eeva Wiseman, a bela capitalista herdeira do matadouro, decide, na ressaca de um acidente, que quer ser amiga de um pobre.
O autor nasceu em Lisboa, onde vive actualmente. Viveu, trabalhou e estudou em Luanda, Aveiro, Boston e Los Angeles. O seu livro de poesia, história do século vinte, distinguido com o Prémio INCM/Vasco Graça Moura, foi editado em 2016, ano em que publicou também Dicionário de ideias feitas em literatura, colectânea de prosa curta escrita em 176 entradas, uma espécie de dicionário. Em 2017, editou três peças de teatro, reunidas na obra Trilogia do olhar. Ver artigo
A Biblioteca Municipal de Loulé, Sophia de Mello Breyner Andresen, volta a receber a rubrica “Livros Abertos”, com a apresentação do romance Eliete, de Dulce Maria Cardoso. A sessão realiza-se no próximo dia 25 de novembro, quarta-feira, pelas 19:30 horas, conduzida por Sandra Boto, docente e investigadora auxiliar do CIAC/Universidade do Algarve. Ver artigo
Mumtazz, de Alexandra Lucas Coelho (agraciada com o Grande Prémio de Literatura de Viagens da APE por Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso), foi publicado pela Caminho. A autora-jornalista-repórter-editora-cronista é convidada por Mumtazz a ver «a sua primeira grande exposição, talvez escrever sobre ela». Ficou para «outra vez» que não chegou em vida… Mumtazz morrerá pouco depois, aos 49, com um cancro no colo do útero, e é cremada em Lisboa, «coberta de flores, entre próximos e poemas». A primeira versão do texto deste livro será escrito para um «encontro-performance», a convite do curador da exposição, num tributo a Mumtazz, mulher com nome de lenda e vida de estória que «escolheu ser quem queria». Ambas nasceram em Dezembro com 3 anos de diferença. Conheciam-se há mais de 20 anos.
E da mesma forma que o Taj Mahal é o túmulo da Mumtaz Mahal persa, este livro-tributo eterniza Mumtazz, artista portuguesa «quase secreta», «grande construtora de chapéus» que, ao jeito pós-moderno, começa a sua arte recriando-se a si mesma, como quando muda de nome: «Como as colagens, essa espécie de cinema, montagem, edição: magia a operar, surf num material passado». Este livro, na senda da homenageada Mumtazz, é «arte do movimento, desenho-escrita-mão», como acontece com um itinerário num mapa que, esbatendo fronteiras e continentes, se torna uma linha traçada a vermelho (que figurará na capa): «E no branco que tudo recomeça, onde terras e mares já são só a memória de um vinco no papel, galoparíamos enfim, livres.»
Essa Rota da Seda, hoje cheia de senhores da guerra, de «desertos milenares metidos em sacos» para proteger milhares de militares americanos. Território que a América pretende dominar, apesar de o Afeganistão a anteceder em 5 séculos. Porque este é também um livro sobre doenças globais, como a poluição que ameaça as fundações do Taj Mahal e o mármore que escurece das chuvas ácidas. Sobre as mil e uma noites da «violência de género contínua», onde as raparigas engravidam mal saem da infância. Ver artigo
Cláudia Andrade, autora publicada pela Elsinore – editora que discretamente tem vindo a apostar em autores inéditos, novas vozes literárias no panorama literário português numa prosa singular com assinatura de estilo –, venceu recentemente o Prémio Autores 2020 da Sociedade Portuguesa de Autores na categoria de Melhor Livro de Ficção Narrativa, com o seu Quartos de Final e Outras Histórias. Já aqui se escreveu a propósito do seu primeiro romance, Caronte à Espera, recenseado no Cultura.Sul de Julho deste ano. Mas compete-nos agora traçar o furor causado pelo seu livro de contos, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica.
O romance Caronte à Espera é capaz de deixar o leitor tão agarrado quanto desconcertado, mas convém esclarecer que o livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias é-lhe superior, ainda que os una essa mesma prosa burilada cujas frases se distendem e emaranham, ao jeito das acções das próprias personagens, tão complexas e enigmáticas quanto marginalmente desamparadas. Estas 18 histórias distendem-se ora num sopro de 3 páginas, ora em 20 páginas, como é o caso de «O Exilado», o conto mais extenso desta colectânea. O primeiro conto, que dá nome ao livro, conta-nos a história de uma noiva desesperada, no dia do casamento, por chamar a atenção do seu noivo, mais preocupado com ver os quartos de final do campeonato de futebol, até que decide entrar numa das casas-de-banho com um dos empregados. Sabemos que a noiva traz consigo uma lâmina com a qual se corta, mas não nos é inteiramente revelado como no desfecho dessa história o casamento acaba em sangue. E assim, logo na primeira história deste livro, o leitor é deixado no fio da navalha, enquanto nele se sucedem momentos de vida de protagonistas tão díspares quanto excluídos. A existência murcha destas personagens apenas parece palpitar fugazmente com vida quando dilaceradas por certas pulsões, viscerais como o sexo, intensas como a paixão, capazes de toldar de vermelho «o seu interior» (p. 119), num mosaico de histórias quase sempre desconcertantes: uma prostituta que recebe num sofá na berma de uma estrada e se liberta ao salvar uma cadela abandonada; uma moribunda que da cama, no prenúncio do seu estertor final, lança diatribes reveladoras dos mais infames segredos das mulheres que em seu redor oram por ela; um violador de viúvas e que depois de ter provado um menino por acidente, decide agarrar um anjo; um poeta que leva uma vida sem máculas nem pecados e por isso decide reescrever com algum acto incauto a sua futura biografia, para que não seja demasiado sensaborona. Estas personagens e situações têm, entre si, muito pouco em comum, mas compõem indubitavelmente um universo tão insólito quanto fracturante numa ficção que rasga o véu da vida, essa «marcha ridiculamente longa» (p. 108), e abala qualquer desejo de conforto num leitor que procure nestes contos uma prosa fácil, delicodoce, que embeleze a vida, nalgum compasso de espero de fuga ao mundo. A escrita desta autora coloca o dedo na ferida, num mundo muito pouco tranquilizador, descrito, a dada altira, como um «grotesco circo» (p. 61), capaz de suscitar revolta «contra a natureza das coisas. Não há nada de claro ou justificado nesta trapalhice universal, nenhuma coordenada» (p. 62), sendo «aquele outro inferno, tão redundante em relação a este» (p. 64). E nesse inferno que é o quotidiano, o insólito anda a par e passo do absurdo da existência humana, entre homens que esfacelam anjos e viúvas que ocupam as mãos para evitar serem visitadas pelo fantasma do marido. A existência, para a qual somos catapultados, arrancados «a um muito confortável nada», é, afinal, uma «camarazinha de horrores» (p. 129), onde a vida tem, ainda assim, o frémito indomável de se replicar, sempre pronta a «fazer um outro morto para nascer dali a nove meses, com um crédito de mil anos para se desiludir com a existência» (p. 50). Mas, um pouco ao jeito do realismo mágico e de um certo pós-expressionismo pictórico, o mundo, como a vida que nele pulula, pode também revelar-se um prodígio, onde até os objectos quotidianos podem perder a sua domesticidade, «removida a patina de quotidianidade», ganhando vida própria e «interesse novo ao olhar» (p. 117). Até a vida pode ganhar ambiência fantasmática, como acontece no funeral de «As Mãos»: «A natureza esmerava-se em participar no espírito da coisa: o dia estava frio, pálido e pétreo. Assim que o cortejo começou, uma névoa leitosa começou por mover-se rente ao chão, apagando as pernas e dando a todos a impressão de que flutuavam. A certa altura, a névoa subiu, esfumando as arestas das coisas, depois adensou-se e submergiu tudo.» (p. 94)
Pode ler-se em «O Exilado» como «o escritor» «pegava nessa coisa insossa e informe que era a vida e a decantava no laboratório da memória, do raciocínio e da boa vontade poética, para conseguir sentir um amor às coisas que seria impossível enquanto confrontado com elas, para delas conseguir espremer então qualquer coisa sobre a qual valesse a pena escrever» (p. 113). São particularmente curiosos os contos desta compilação que mais se debruçam sobre a arte da escrita, em que pode o leitor querer deslindar uma explicação possível para o espírito que anima estas páginas, como em «Requerimento» onde se pode ler como o autor dessa carta «inadvertida e compulsivamente» levou a tarefa de pensar «demasiado a sério e, à custa de observar, ponderar e coleccionar tanto e tão circunstanciado absurdo, matéria-prima do mundo, tomei amor ao desalento e arruinei a minha alegria para sempre» (p. 60). Podíamos até rematar que a prosa de Claúdia Andrade entra no panteão dos «escritores merecedores desse epíteto» que «deambularam por ruelas escuras em sofrimento pelas suas obras, esfolaram os narizes contra as paredes da labiríntica e incerta intuição literária. Era uma obra sólida, a sua, densa e trapalhona como a vida» (p. 117).
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Autora ainda do livro de contos Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe era habitual de Vitória F., entretanto abandonado), considera-se sobretudo contista, embora esteja a trabalhar num segundo romance. Ver artigo
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